Cadernos apreendidos pela Brigada Militar em São Gabriel mostram rotina dos acampamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e como agem os militantes em confrontos - Reportagem Especial do Jornal Zero Hora – Por Humberto Trezzi
Ao alvorecer do último dia 8, cerca de 800 militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) acampados na fazenda São Paulo 2, em São Gabriel, foram surpreendidos pela chegada de igual número de PMs. Munidos de ordem judicial, os policiais militares realizaram busca de objetos que poderiam ter sido levados pelos sem-terra durante a invasão promovida dias antes numa fazenda próxima, a Estância do Céu, pertencente a Alfredo Southall e cobiçada pelo MST desde 2003.
Durante a vistoria foram apreendidos facões, foices, facas - definidos pelo MST como objetos de trabalho - e escudos improvisados. O que mais chamou a atenção dos policiais (acabaram sendo entregues ao Ministério Público de São Gabriel para investigação), no entanto, foram quatro cadernos. Preenchidos a caneta, eles se dividem entre diários e atas que relatam o cotidiano dos acampados. São um misto de orientação dos líderes aos militantes e resumo das discussões internas.
A leitura dos cadernos, aos quais o Zero Hora teve acesso, mostra que o MST utiliza termos militares para gerenciar os acampamentos, como Brigada de Organicidade e Pelotão de Apoio. No 1º Pelotão do Grupo Gestor, por exemplo, quatro pessoas centralizam a distribuição igualitária de víveres.
Os métodos militares estabelecem a organização de rondas de vigilância, distribuídas em turnos, como num quartel. As rondas incluem crianças, o que será motivo de investigação do Ministério Público. Na vistoria do acampamento da fazenda São Paulo 2, os PMs descobriram entre os sem-terra 28 crianças sem registros e 16 adolescentes sem responsáveis. Um trecho aponta que crianças maiores de 14 anos não estão livres de tirar guarda.
Foram encaminhados também à Polícia Civil e aos promotores públicos cadernos que dão noções de como os acampados podem resistir à desocupação das terras (incluindo menção a bombas e orientações sobre o que falar em momentos delicados) e de como podem driblar a fiscalização do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) quando se candidatam a ganhar terra.Confira os principais trechos dos cadernos:
COMO ARREGIMENTAR APOIO
Após a invasão das fazendas de Alfredo Southall, a direção do acampamento estabeleceu algumas metas:
"Às 9h o oficial de Justiça vem trazer os papéis... A coordenação desce e a senha é A Southall é nossa. O que dizer para a imprensa? Estamos num latifúndio que não tem apoiadores! Que venha um representante do INCRA para propor a reforma agrária, de preferência já com terras e local. As Igrejas têm de cobrar do Ministério Público. Exigir apoiadores e mídia na hora do despejo".
Em outro trecho, orientação sobre como proceder nas cidades vizinhas e sobre a função de doações de alimentos nos bairros próximos dos acampamentos:
"Muito importante o trabalho nos bairros, como doar alimentos, panfletear, para cair rápido nos meios de comunicação".
RESPOSTA PADRÃO
Uma das atas estabelece uma orientação aos acampados sobre como responder ao cadastro do INCRA, que vai determinar quem está apto ou não a receber cesta básica alimentar:
"É o cadastro da bóia, não precisa se intimidar...Tem de dizer que não tem bem familiar, não tem renda porque não trabalha. Quem não tem documento, dizer que a Brigada roubou. Se tem passagem na Polícia? Não. Se já era agricultor? Sim. O que fazia há cinco anos atrás? Nada, por isso estou aqui... Tempo de acampamento? Dizer que tem mais de um ano... E assim por diante".
QUEM TIRA GUARDA
O uso de crianças para fazer guarda nos acampamentos não é rotina, mas acontece. Já o de mulheres é cotidiano, como mostram esses trechos do diário:
"Crianças pegando plantão, 10h às 12h, de 1h30min às 6h". "... guarda: de menor, não tira guarda, por motivo se o Conselho (Tutelar) chega e vê um de menor na guarda, causa problema..." "Luana, Paula, Denise e Juliana, quatro horas de guarda hoje".
CONTROLE DO INSÓLITO
O ímpeto de controle chega até mesmo ao que os acampados devem fazer com os seus animais: "Foi acordado em assembléia que os cachorros têm que ser amarrados".
PEDRAS, TRINCEHIRAS E BOMBAS
Antes do despejo de uma das invasões, novas orientações são anotadas num diário: "Resistência do cenário: mais pedras, ferros nas trincheiras, alguns pontos estratégicos... cavalo apavora... Zinco como escudo. Bombas... tem um pessoal que é preparado. Manter a linha. Retorno do Pelotão 13: fazer trincheira lá atrás. Se protejam atrás, porque o pelotão que tome cuidado, atiram foguete..."
DESAVENÇAS E PUNIÇÕES
Casos de desavenças ou crimes são tratados por uma comissão disciplinar, que determina o destino daquele que não se adapta: "... tá roubando galinha. Quem rouba é expulso". “... os rapazes foram expulsos porque roubaram da Vozinha 15 reais, não gostavam de reunião e não faziam tarefa...". “... proposta da direção de transferir P. para outro acampamento, porque corre risco de vida. Vai ser transferido, queira ou não".
DIVISÃO DE CLASSES
As anotações de uma folha transmitem aos militantes uma divisão social bem clara entre os grandes proprietários de terra e os sem-terra e chegam a traduzir uma desesperança quanto ao rumo da reforma agrária e convoca para a luta:
"Ricos... concentram a terra comprada com o dinheiro do povo. Quem sustenta é a Farsul e o Poder Judiciário. Pobres... lutamos para que a terra seja partilhada. Para lutar, precisamos nos organizar. Levando em conta tudo que conversamos, vamos esperar sentados, vamos acreditar nas palavras do INCRA, das mil famílias, ou vamos lutar, buscar conquistas? Há disposição".
LUCRO COM BEBIDAS
Trecho faz uma avaliação do resultado de uma das festas do acampamento:
"Avaliação de domingo, teve bastante lucro com a venda de bebidas. Sobre bagunças, sempre envolvido o Peixe".
UMA INVASÃO
Trecho de um caderno faz uma avaliação de uma invasão de propriedade da família Southall no mês de abril, quando o MST promoveu uma série de ações pelo Brasil: "Nível está bom. Repercussão da ocupação está boa em sete Estados. Em Pernambuco, 23 ocupações. Oposição da PM. Ação rápida. Muita arma no acampamento. Imprensa".
ESCOLHA DE ALVOS
Líderes, ao pregar o que fazer para organizar o movimento em um momento delicado, sugerem a invasão da sede do INCRA: "O que precisamos fazer? Fazer uma ocupação no INCRA para fazer pressão, para que saia terra. Ou ocupar uma área símbolo. Ficar e não arredar pé. Quando? Se for possível, amanhã, já".
MEDO DE FLAGRANTE
No dia 29 de abril, a recomendação para evitar prisões na hora em que a BM fosse revistar o acampamento em busca de objetos saqueados: "Se tiver algo que trouxe da Southall, favor consumir. Senão vai preso em flagrante".
ÍNDIOS CONTROLAM TRANSITO EM RODOVIA FEDERAL DE RORAÍMA
Motoristas precisam de autorização de tráfego e não podem circular à noite. Por Evandro Éboli – Jornal O Globo
Detentores exclusivos de quase metade de Roraima, 39 mil índios de várias etnias vivem em 10,5 milhões de hectares do estado. A população de 355 mil não-índios vive na outra metade. Alegando seu direito originário sobre as terras, os índios lançam mão de todos os recursos para evitar que estranhos cheguem perto de suas áreas. Eles bloqueiam estradas e rios. Os uaimiri-atroari até criaram uma barreira, com cancela e corrente, e estabeleceram horário para o trânsito de veículos num trecho de 125 quilômetros da BR-174, rodovia federal que cruza a reserva. Das 18h30m às 6h, é proibido o tráfego de carros e caminhões neste trecho da rodovia federal.
Até 1996, antes de a rodovia ser asfaltada, a cancela era controlada por militares do 7º Batalhão de Engenharia e Construção do Exército. Os uaimiri argumentam que restringir o acesso a suas terras é uma forma de proteger fauna e flora. É à noite que os animais circulam pela estrada, no meio da floresta, assim como os índios que vivem em aldeias perto da rodovia. Mesmo liberado de dia, o tráfego de carros causa acidentes. Uma placa enorme, na beira do asfalto, informa que, de agosto de 97 a abril de 2008, 4.210 animais foram atropelados dentro da reserva, entre cobras, sagüis, jacarés, cotias e onças.
BARREIRA NÃO TEM AMPARO LEGAL
Os índios só abrem exceções e permitem a circulação, à noite, de ônibus interestaduais, ambulâncias e caminhões que transportam mercadorias perecíveis. Os índios passam a noite numa maloca que serve de posto de fiscalização. O motorista que segue viagem depois das 18h30m tem que levar um documento - a "autorização de tráfego no trecho da reserva", e apresentá-la na outra extremidade, no posto que fica em Abonari, no Amazonas. Nessa autorização constam os nomes do motorista e dos passageiros no veículo, o número da carteira de habilitação, e o nome do fiscal de entrada. Depois de uma hora e meia, os fiscais dos dois postos trocam informações e checam, por rádio, se o veículo já saiu da reserva.
Esse controle de veículos não tem qualquer amparo legal. A construção da barreira teria sido uma iniciativa de militares e indigenistas na época da construção da estrada, em 1977. Houve confronto durante a construção, e 32 militares morreram. Há até um monumento na rodovia com os nomes dos mortos. Os uaimiri dizem que milhares de indígenas também morreram no conflito. O líder dos uaimiri-atroari, Mário Paruwe, diz que cada grupo tem sua lei.
- Pode não estar no papel a barreira, mas é a nossa lei. Assim a tratamos. E, se respeitamos os brancos quando vamos na terra deles, eles que respeitem as nossas - disse Paruwe.
O confronto pela demarcação de Raposa Serra do Sol, uma área de 1,7 milhão de hectares, pôs em lados opostos grupos indígenas que têm o mesmo comportamento e fazem coisas como impedir o acesso de não-índios às terras. Eles revistam carros, exigem identificação e só permitem a entrada de quem tem autorização de entidades às quais são ligados. Para se chegar à área onde um grupo de índios pró-demarcação contínua montou um acampamento, é preciso pedir autorização ao Conselho Indígena de Roraima (CIR), entidade à qual estão ligados.
"O CIDADÃO TEM O DIREITO DE IR E VIR"
O governador de Roraima, José Anchieta Júnior (PSDB), contrário à demarcação da Raposa em terra contínua e a favor da reivindicação dos plantadores de arroz, protestou contra a ação dos índios:
- Índios não podem bloquear estradas nem montar barreiras marcando hora para veículos entrarem e saírem de rodovia federal. Qualquer cidadão tem o direito de ir e vir. Vamos ter que mudar isso na Justiça.
O governo de Roraima entrou com ação no Supremo Tribunal Federal, semana passada, para tentar proibir a barreira dos uaimiri. O argumento é que a cancela não está prevista em lei e fere o livre trânsito de pessoas e veículos. Anchieta é também o autor da ação que questiona a demarcação de Raposa em terra contínua. Conseguiu sua primeira vitória quando o STF concedeu liminar suspendendo a operação Upatakon 3, da Polícia Federal, criada para retirar os não-índios da reserva. Os índios ingaricó também bloquearam estradas no passado.
Ao alvorecer do último dia 8, cerca de 800 militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) acampados na fazenda São Paulo 2, em São Gabriel, foram surpreendidos pela chegada de igual número de PMs. Munidos de ordem judicial, os policiais militares realizaram busca de objetos que poderiam ter sido levados pelos sem-terra durante a invasão promovida dias antes numa fazenda próxima, a Estância do Céu, pertencente a Alfredo Southall e cobiçada pelo MST desde 2003.
Durante a vistoria foram apreendidos facões, foices, facas - definidos pelo MST como objetos de trabalho - e escudos improvisados. O que mais chamou a atenção dos policiais (acabaram sendo entregues ao Ministério Público de São Gabriel para investigação), no entanto, foram quatro cadernos. Preenchidos a caneta, eles se dividem entre diários e atas que relatam o cotidiano dos acampados. São um misto de orientação dos líderes aos militantes e resumo das discussões internas.
A leitura dos cadernos, aos quais o Zero Hora teve acesso, mostra que o MST utiliza termos militares para gerenciar os acampamentos, como Brigada de Organicidade e Pelotão de Apoio. No 1º Pelotão do Grupo Gestor, por exemplo, quatro pessoas centralizam a distribuição igualitária de víveres.
Os métodos militares estabelecem a organização de rondas de vigilância, distribuídas em turnos, como num quartel. As rondas incluem crianças, o que será motivo de investigação do Ministério Público. Na vistoria do acampamento da fazenda São Paulo 2, os PMs descobriram entre os sem-terra 28 crianças sem registros e 16 adolescentes sem responsáveis. Um trecho aponta que crianças maiores de 14 anos não estão livres de tirar guarda.
Foram encaminhados também à Polícia Civil e aos promotores públicos cadernos que dão noções de como os acampados podem resistir à desocupação das terras (incluindo menção a bombas e orientações sobre o que falar em momentos delicados) e de como podem driblar a fiscalização do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) quando se candidatam a ganhar terra.Confira os principais trechos dos cadernos:
COMO ARREGIMENTAR APOIO
Após a invasão das fazendas de Alfredo Southall, a direção do acampamento estabeleceu algumas metas:
"Às 9h o oficial de Justiça vem trazer os papéis... A coordenação desce e a senha é A Southall é nossa. O que dizer para a imprensa? Estamos num latifúndio que não tem apoiadores! Que venha um representante do INCRA para propor a reforma agrária, de preferência já com terras e local. As Igrejas têm de cobrar do Ministério Público. Exigir apoiadores e mídia na hora do despejo".
Em outro trecho, orientação sobre como proceder nas cidades vizinhas e sobre a função de doações de alimentos nos bairros próximos dos acampamentos:
"Muito importante o trabalho nos bairros, como doar alimentos, panfletear, para cair rápido nos meios de comunicação".
RESPOSTA PADRÃO
Uma das atas estabelece uma orientação aos acampados sobre como responder ao cadastro do INCRA, que vai determinar quem está apto ou não a receber cesta básica alimentar:
"É o cadastro da bóia, não precisa se intimidar...Tem de dizer que não tem bem familiar, não tem renda porque não trabalha. Quem não tem documento, dizer que a Brigada roubou. Se tem passagem na Polícia? Não. Se já era agricultor? Sim. O que fazia há cinco anos atrás? Nada, por isso estou aqui... Tempo de acampamento? Dizer que tem mais de um ano... E assim por diante".
QUEM TIRA GUARDA
O uso de crianças para fazer guarda nos acampamentos não é rotina, mas acontece. Já o de mulheres é cotidiano, como mostram esses trechos do diário:
"Crianças pegando plantão, 10h às 12h, de 1h30min às 6h". "... guarda: de menor, não tira guarda, por motivo se o Conselho (Tutelar) chega e vê um de menor na guarda, causa problema..." "Luana, Paula, Denise e Juliana, quatro horas de guarda hoje".
CONTROLE DO INSÓLITO
O ímpeto de controle chega até mesmo ao que os acampados devem fazer com os seus animais: "Foi acordado em assembléia que os cachorros têm que ser amarrados".
PEDRAS, TRINCEHIRAS E BOMBAS
Antes do despejo de uma das invasões, novas orientações são anotadas num diário: "Resistência do cenário: mais pedras, ferros nas trincheiras, alguns pontos estratégicos... cavalo apavora... Zinco como escudo. Bombas... tem um pessoal que é preparado. Manter a linha. Retorno do Pelotão 13: fazer trincheira lá atrás. Se protejam atrás, porque o pelotão que tome cuidado, atiram foguete..."
DESAVENÇAS E PUNIÇÕES
Casos de desavenças ou crimes são tratados por uma comissão disciplinar, que determina o destino daquele que não se adapta: "... tá roubando galinha. Quem rouba é expulso". “... os rapazes foram expulsos porque roubaram da Vozinha 15 reais, não gostavam de reunião e não faziam tarefa...". “... proposta da direção de transferir P. para outro acampamento, porque corre risco de vida. Vai ser transferido, queira ou não".
DIVISÃO DE CLASSES
As anotações de uma folha transmitem aos militantes uma divisão social bem clara entre os grandes proprietários de terra e os sem-terra e chegam a traduzir uma desesperança quanto ao rumo da reforma agrária e convoca para a luta:
"Ricos... concentram a terra comprada com o dinheiro do povo. Quem sustenta é a Farsul e o Poder Judiciário. Pobres... lutamos para que a terra seja partilhada. Para lutar, precisamos nos organizar. Levando em conta tudo que conversamos, vamos esperar sentados, vamos acreditar nas palavras do INCRA, das mil famílias, ou vamos lutar, buscar conquistas? Há disposição".
LUCRO COM BEBIDAS
Trecho faz uma avaliação do resultado de uma das festas do acampamento:
"Avaliação de domingo, teve bastante lucro com a venda de bebidas. Sobre bagunças, sempre envolvido o Peixe".
UMA INVASÃO
Trecho de um caderno faz uma avaliação de uma invasão de propriedade da família Southall no mês de abril, quando o MST promoveu uma série de ações pelo Brasil: "Nível está bom. Repercussão da ocupação está boa em sete Estados. Em Pernambuco, 23 ocupações. Oposição da PM. Ação rápida. Muita arma no acampamento. Imprensa".
ESCOLHA DE ALVOS
Líderes, ao pregar o que fazer para organizar o movimento em um momento delicado, sugerem a invasão da sede do INCRA: "O que precisamos fazer? Fazer uma ocupação no INCRA para fazer pressão, para que saia terra. Ou ocupar uma área símbolo. Ficar e não arredar pé. Quando? Se for possível, amanhã, já".
MEDO DE FLAGRANTE
No dia 29 de abril, a recomendação para evitar prisões na hora em que a BM fosse revistar o acampamento em busca de objetos saqueados: "Se tiver algo que trouxe da Southall, favor consumir. Senão vai preso em flagrante".
ÍNDIOS CONTROLAM TRANSITO EM RODOVIA FEDERAL DE RORAÍMA
Motoristas precisam de autorização de tráfego e não podem circular à noite. Por Evandro Éboli – Jornal O Globo
Detentores exclusivos de quase metade de Roraima, 39 mil índios de várias etnias vivem em 10,5 milhões de hectares do estado. A população de 355 mil não-índios vive na outra metade. Alegando seu direito originário sobre as terras, os índios lançam mão de todos os recursos para evitar que estranhos cheguem perto de suas áreas. Eles bloqueiam estradas e rios. Os uaimiri-atroari até criaram uma barreira, com cancela e corrente, e estabeleceram horário para o trânsito de veículos num trecho de 125 quilômetros da BR-174, rodovia federal que cruza a reserva. Das 18h30m às 6h, é proibido o tráfego de carros e caminhões neste trecho da rodovia federal.
Até 1996, antes de a rodovia ser asfaltada, a cancela era controlada por militares do 7º Batalhão de Engenharia e Construção do Exército. Os uaimiri argumentam que restringir o acesso a suas terras é uma forma de proteger fauna e flora. É à noite que os animais circulam pela estrada, no meio da floresta, assim como os índios que vivem em aldeias perto da rodovia. Mesmo liberado de dia, o tráfego de carros causa acidentes. Uma placa enorme, na beira do asfalto, informa que, de agosto de 97 a abril de 2008, 4.210 animais foram atropelados dentro da reserva, entre cobras, sagüis, jacarés, cotias e onças.
BARREIRA NÃO TEM AMPARO LEGAL
Os índios só abrem exceções e permitem a circulação, à noite, de ônibus interestaduais, ambulâncias e caminhões que transportam mercadorias perecíveis. Os índios passam a noite numa maloca que serve de posto de fiscalização. O motorista que segue viagem depois das 18h30m tem que levar um documento - a "autorização de tráfego no trecho da reserva", e apresentá-la na outra extremidade, no posto que fica em Abonari, no Amazonas. Nessa autorização constam os nomes do motorista e dos passageiros no veículo, o número da carteira de habilitação, e o nome do fiscal de entrada. Depois de uma hora e meia, os fiscais dos dois postos trocam informações e checam, por rádio, se o veículo já saiu da reserva.
Esse controle de veículos não tem qualquer amparo legal. A construção da barreira teria sido uma iniciativa de militares e indigenistas na época da construção da estrada, em 1977. Houve confronto durante a construção, e 32 militares morreram. Há até um monumento na rodovia com os nomes dos mortos. Os uaimiri dizem que milhares de indígenas também morreram no conflito. O líder dos uaimiri-atroari, Mário Paruwe, diz que cada grupo tem sua lei.
- Pode não estar no papel a barreira, mas é a nossa lei. Assim a tratamos. E, se respeitamos os brancos quando vamos na terra deles, eles que respeitem as nossas - disse Paruwe.
O confronto pela demarcação de Raposa Serra do Sol, uma área de 1,7 milhão de hectares, pôs em lados opostos grupos indígenas que têm o mesmo comportamento e fazem coisas como impedir o acesso de não-índios às terras. Eles revistam carros, exigem identificação e só permitem a entrada de quem tem autorização de entidades às quais são ligados. Para se chegar à área onde um grupo de índios pró-demarcação contínua montou um acampamento, é preciso pedir autorização ao Conselho Indígena de Roraima (CIR), entidade à qual estão ligados.
"O CIDADÃO TEM O DIREITO DE IR E VIR"
O governador de Roraima, José Anchieta Júnior (PSDB), contrário à demarcação da Raposa em terra contínua e a favor da reivindicação dos plantadores de arroz, protestou contra a ação dos índios:
- Índios não podem bloquear estradas nem montar barreiras marcando hora para veículos entrarem e saírem de rodovia federal. Qualquer cidadão tem o direito de ir e vir. Vamos ter que mudar isso na Justiça.
O governo de Roraima entrou com ação no Supremo Tribunal Federal, semana passada, para tentar proibir a barreira dos uaimiri. O argumento é que a cancela não está prevista em lei e fere o livre trânsito de pessoas e veículos. Anchieta é também o autor da ação que questiona a demarcação de Raposa em terra contínua. Conseguiu sua primeira vitória quando o STF concedeu liminar suspendendo a operação Upatakon 3, da Polícia Federal, criada para retirar os não-índios da reserva. Os índios ingaricó também bloquearam estradas no passado.
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