O ginásio de esportes de Brasiléia, cidade de 20 000 habitantes no interior do Acre, transformou-se no cenário mais visível de uma crise política e humanitária que pode pôr em xeque as relações diplomáticas entre Brasil e Bolívia. Acampados em barracas, estão ali 120 dos mais de 1 000 bolivianos que fugiram para o Brasil após o acirramento da disputa entre os partidários do presidente Evo Morales e a oposição no departamento de Pando, o mais pobre do país. Em 11 de setembro, um confronto entre os dois grupos deixou dezoito mortos, setenta feridos e cinqüenta desaparecidos e deu início a um processo intenso de fuga através da fronteira.
O Brasil é o destino de centenas de refugiados da guerrilha colombiana, entre ex-integrantes das Farc, ex-milicianos e simples trabalhadores que fogem da violência. Essa migração clandestina não produziu até agora um problema político mais grave entre Brasília e os governos vizinhos. No caso dos bolivianos, porém, a chegada dos fugitivos tem provocado a emissão de sucessivos alertas por parte do Exército, da Polícia Federal e da Agência Brasileira de Inteligência para um provável incidente diplomático que pode explodir a qualquer momento. Em pelo menos duas ocasiões, agentes do governo do presidente Evo Morales invadiram o território brasileiro para tentar prender oposicionistas que cruzaram a fronteira.
O primeiro incidente ocorreu há um mês, quando agentes da Polícia Federal flagraram quatro bolivianos à paisana circulando pelas ruas de Brasiléia em uma caminhonete. Abordados, eles se identificaram como membros do Exército boliviano, mas disseram que estavam de folga no Brasil. Duas semanas depois, outros dois militares foram vistos rondando o ginásio da cidade e fotografando alguns refugiados. Abordados, também desconversaram.
Os serviços de inteligência da PF e do Exército, porém, descobriram que os seis militares estavam em missão oficial. Tentavam localizar na cidade as lideranças do movimento de resistência da região de Pando, que, de acordo com os levantamentos feitos, realmente cruzaram a fronteira, mas estão escondidos em regiões próximas. Para evitar um incidente maior, o governo brasileiro decidiu devolver os militares à Bolívia, advertindo, entretanto, que não vai tolerar novas invasões. "O Brasil não vai admitir violação à sua soberania e às suas fronteiras", afirma Luiz Paulo Barreto, secretário executivo do Ministério da Justiça e presidente do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare). "Recebemos e protegemos os bolivianos, mas não vamos importar a crise do vizinho."
O Ministério da Defesa brasileiro estuda a realização de manobras militares na região. O Exército já enviou 300 homens e dois helicópteros a Epitaciolândia, cidade vizinha a Brasiléia. Os dois municípios ficam a 100 metros da boliviana Cobija, a capital de Pando, e são separados do país vizinho por duas pontes. A PF reforçou a fronteira com dez homens da inteligência. A ponte entre Brasiléia e Cobija foi fechada para carros pelo Brasil, para aumentar o controle sobre os bolivianos que entram no país. Para tentar serenar os ânimos, o ministro da Defesa da Bolívia, Walker San Miguel, já esteve duas vezes no Brasil e ouviu reclamações formais sobre a atuação de seus militares. Na semana passada, o assunto foi discutido em audiência entre Alfredo Rada, ministro do governo da Bolívia, e Tarso Genro, ministro da Justiça do Brasil. Rada levou na bagagem uma série de advertências a Evo Morales. Embora seja simpático ao governo boliviano, o Brasil avisou que terá de tomar uma atitude drástica caso os militares vizinhos continuem patrocinando ações clandestinas em território brasileiro.
A revolução bolivariana conduzida por Evo Morales e inspirada no presidente da Venezuela, Hugo Chávez, dividiu o país entre os "collas", indígenas e mestiços que dão suporte ao governo Morales, e os "cambas", brancos oposicionistas que lutam pela autonomia administrativa e orçamentária dos departamentos – equivalentes aos estados brasileiros. Em agosto, a divisão foi acirrada por um referendo que decidiu sobre a manutenção do mandato de Morales e dos governadores. Tanto o presidente como os oposicionistas conseguiram ficar no cargo. Os collas de Pando, porém, não se conformaram com a vitória do rival Leopoldo Fernández. No início de setembro, três colunas de camponeses, financiadas por dinheiro federal, saíram do interior de Pando rumo a Cobija para destituir Fernández. O governador soube do plano e ordenou que servidores cambas usassem máquinas públicas para cavar trincheiras e impedir a passagem dos rivais. Os dois grupos se encontraram em uma praça em Porvenir. Um engenheiro de Pando, Pedro Oshiro, morreu com um tiro na cabeça quando tentava mediar o conflito. Os autonomistas de Fernández reagiram e iniciaram o tiroteio. Ao final de uma hora de batalha, dezesseis camponeses ligados a Morales e dois autonomistas que apoiavam Fernández caíram mortos.
A chegada dos bolivianos ao Acre representa o maior fluxo de deslocados políticos da história do Brasil, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur). Somente no dia 15 de setembro, quando o Exército foi para as ruas, 400 bolivianos cruzaram a Ponte Wilson Pinheiro, inaugurada por Lula em 2004, e chegaram a Brasiléia, onde passaram a noite ao relento na praça central da cidade. Nos dias seguintes, mais 600 bolivianos chegaram ao Brasil pelas pontes, atravessando a nado o Rio Acre ou caminhando pela floresta. Hoje, o maior grupo de refugiados está abrigado no ginásio de esportes, apelidado pelos bolivianos de "coliseu". O restante se espalha por hotéis, pousadas, casas de amigos e sedes de sindicatos. Todos recebem alimento e assistência médica do governo do Acre e são protegidos pelo Exército brasileiro. Os cambas passam o dia sintonizados em rádios e TVs bolivianas em busca de notícias, principalmente sobre a situação de Leopoldo Fernández, que segue preso em um quartel do Exército em La Paz mesmo após a Suprema Corte ter concedido um habeas corpus para que fosse solto.
Há dois grupos de oposicionistas bolivianos em Brasiléia e Epitaciolândia. Em hotéis, casas alugadas e moradias de familiares, ficam profissionais liberais ligados diretamente a Fernández, que são dirigentes do partido de oposição a Morales. É o caso do advogado Carlos Soarez, amigo de infância de Leopoldo, que fechou seu escritório em Cobija, cruzou a ponte em uma caminhonete e se hospedou no melhor hotel da região. "Se eu cruzar a fronteira agora, durante o estado de sítio, serei preso. Temos de esperar o Exército sair das ruas e Leopoldo sair da cadeia para reorganizarmos a oposição ao ditador cocalero", brada Soarez na varanda do hotel, com jornais e revistas bolivianos sobre as pernas. Esse grupo, segundo informações da Polícia Federal, estaria usando fazendas em território brasileiro para organizar a resistência – o que também é ilegal. A polícia investiga até uma loja que estaria enviando armas da Bolívia para o Brasil. A informação foi repassada ao ministro Rada para que a Bolívia tome providências.
A principal liderança do grupo é Ana Melena de Suzuki, presidente do Comitê Cívico de Pando. Acusada formalmente pela polícia boliviana de responsável pelo massacre, ela também fugiu para Brasiléia. Mesmo em território brasileiro, foi perseguida por agentes bolivianos e pediu ajuda à PF, que a levou para longe da fronteira. Boa parte dos líderes autonomistas já pediu refúgio político ao Brasil. Temem ser perseguidos e presos pelo massacre se voltarem à Bolívia. O jornalista Jairo Vallejos, 24 anos, por exemplo, filmou um tiroteio entre militares e autonomistas no aeroporto de Cobija no dia seguinte ao massacre. Perseguido, fugiu para o Brasil com a mulher, grávida de nove meses, e teve sua primeira filha no hospital de Brasiléia. De acordo com o Conare, 46 bolivianos haviam pedido refúgio até a semana passada. Pelas próprias características do conflito boliviano, o perfil desses deslocados é atípico. Segundo o representante do Acnur no Brasil, Javier Lopez-Cifuentes, em geral os refugiados são camponeses pobres e moradores de periferias urbanas. "Aqui, são pessoas de classe média, com um padrão social maior", afirma Cifuentes.
O julgamento dos pedidos de refúgio pelo Conare deve ocorrer quando a situação na Bolívia se normalizar. A avaliação do governo brasileiro é que, com o fim do estado de sítio, boa parte dos bolivianos deve cruzar a fronteira de volta. Inicialmente, o estado de sítio vigorará até 12 de dezembro, podendo ser prorrogado por mais noventa dias. Evo Morales, porém, tem dado declarações contraditórias. Na segunda-feira passada, disse que defendia a prorrogação. Três dias depois, prometeu levantar o estado de exceção. Como se vê, é difícil prever o que acontecerá na Bolívia. Imaginando que a situação estivesse mais calma, na semana passada um grupo de asilados tentou voltar. Cinco deles foram presos pelo Exército e levados a La Paz. Assustada, uma nova leva de bolivianos cruzou a fronteira. Apenas na semana passada, vinte se registraram na Defesa Civil do Acre em busca de proteção. A oposição foge e tenta armar a resistência no Brasil. Os aliados de Evo se armam para sufocar os oposicionistas. A crise não tem perspectiva de acabar. Na porta de sua loja de bebidas e comidas importadas, em Cobija, órfão dos turistas brasileiros que fugiram da crise boliviana, o comerciante Angel Mena só lamenta: "Os dois lados se excederam, não há inocente nessa história. Agora ninguém sabe o que fazer para consertar essa situação". Muito menos Evo Morales, o homem que dividiu a Bolívia e exportou sua crise.
FUGA DO HOSPITAL
"Eu estava em uma caminhonete com o engenheiro do governo de Pando que tentava negociar com os camponeses. Não teve conversa. Tiraram-nos do carro, atiraram nele e me jogaram no chão. Pedi para não morrer. Eles nem ouviram. Apanhei, levei uma machadada na mão, perdi parte de um dedo. Deram dois tiros na minha direção, eu me fingi de morto e consegui sobreviver. Fui internado e fugi do hospital porque soube que iriam me matar. Se eu voltar à Bolívia, os collas me matam." Hugo Durán Salvatierra, 35 anos, motorista do governo de Pando
LONGE DA FAMÍLIA
"Fui convocado pelo governador para cavar uma trincheira e impedir a passagem dos camponeses que marchavam para Cobija. Quando estourou a guerra, usei paus e pedras para atacar os inimigos. Levei um tiro na barriga e desmaiei. No hospital, os collas tentaram me pegar. Fugi com uma sonda na bexiga, andei pelo mato por dois dias e cheguei ao Brasil. O grande feito de Evo Morales foi dividir a Bolívia. Estou aqui vivendo em barraca, fora do meu país, longe de minha mulher e de meus filhos." Rafael Segovia, 54 anos, tratorista do governo de Pando
COM EVO MORALES
"Vivemos uma luta de classes na Bolívia. O governador Leopoldo está ao lado dos latifundiários que tomam as terras e exploram os pobres. Então, a reação dos camponeses é justa. Sou marcado pelos cambas por ser primo de Evo Morales. Por isso, queimaram minha loja quando fugiram. Mas não há perseguição política pelo Exército. Eles fogem porque são bandidos e covardes. Mataram inocentes e agora estão com medo da Justiça. Eles sabem que, se voltarem do Brasil, haverá vingança."- Filemon Condori, 37 anos, comerciante e dirigente do MAS
A NOVA BOLÍVIA
"Não houve enfrentamento entre camponeses e autonomistas. Houve um massacre promovido pelo governador Leopoldo com a ajuda de pistoleiros brasileiros. Organizei a marcha que ia a Cobija depor o governador. Levei dois tiros, fui encaminhado a La Paz e tratado por médicos cubanos que salvaram minha vida. Leopoldo é corrupto, elitista, ligado à ditadura e aos latifundiários. Não há mais espaço para essa gente na nova Bolívia de Evo. Se ele sair da cadeia, não vamos deixá-lo reassumir o governo." Aladino Cardozo, 54 anos, sindicalista e dirigente do MAS em Pando
MEDO DO RETORNO
Estava cavando uma trincheira para impedir a passagem dos caminhões dos golpistas do MAS quando eles chegaram e me tomaram como refém. Fui amarrado, amordaçado e apanhei. A polícia me libertou e eu corri para o mato. Na fuga, levei dois tiros por trás, que atingiram minhas pernas. Fui internado na Bolívia, vi amigos ser resgatados do hospital e fugi para o Brasil. Minha mulher continua em Cobija. Sonho em voltar para casa, mas sei que serei preso se cruzar a fronteira." - Edgar Peña, 40 anos, funcionário do governo de Pando
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