REFEIÇÃO HUMANA
O assassinato de um rapaz de 21 anos no interior do Amazonas lança suspeitas de antropofagia sobre um grupo de índios da etnia culina
Um suposto caso de canibalismo na Amazônia chocou o mundo na semana passada. A rede de televisão americana CNN divulgou que no dia 1º de fevereiro cinco índios da etnia culina teriam esquartejado e devorado partes do corpo de um jovem de 21 anos na aldeia do Cacau, um povoamento a 1.200 quilômetros da capital do Estado.
Os detalhes do crime foram revelados pelo sargento e delegado da cidade de Envira, José Correia da Silva. “Primeiro, eles mataram a vítima a facadas, decapitaram e cortaram o corpo ao meio. Depois, retiraram o coração, fígado, cérebro, as vísceras, o pênis e pedaço de uma das pernas. Daí assaram e comeram essas partes”, disse Correia a ÉPOCA.
O ato foi denunciado em 2 de fevereiro por índios da própria aldeia culina, assustados com o relato de canibalismo. “Um professor indígena e o filho de um cacique de uma aldeia vizinha me procuraram para contar sobre o assassinato”, afirmou o policial. “Os responsáveis teriam voltado para a aldeia falando que mataram e comeram um cariú, como eles chamam gente não índia. Alguns culinas ficaram revoltados com o crime e me procuraram.”
A vítima, Océlio Alves de Carvalho, foi encontrada dois dias depois do crime, seu corpo em estado avançado de decomposição. O cadáver foi abandonado às margens de um igarapé, próximo à aldeia indígena Cacau. Apesar da denúncia feita pelos índios, a polícia atrasou as buscas à espera de um representante da Fundação Nacional do Índio (Funai). “Achamos a cabeça perto de uma pedra, coberta por folhas. As outras partes estavam espalhadas pelo local”, diz o policial. Nem a polícia nem a família da vítima sabem ao certo as razões que motivaram o assassinato. O jovem morto era deficiente mental e visitava com frequência a terra índigena. Seu tio, Eudo Alves Francisco, diz que antes de desaparecer Océlio andava perto da aldeia para levar uma vaca a pastar. “Os índios passaram alcoolizados pelo local e o chamaram para entrar na mata com eles. Foi aí que o mataram”, diz o delegado. “Nunca tinha ocorrido um crime desse tipo na cidade. Até eu estou chocado com o que vi.”
Isolada no extremo oeste do Amazonas, a cidade de Envira é vizinha de uma terra indígena e cercada por florestas. Distante mais de 1.000 quilômetros da capital, o município foi povoado durante o ciclo da borracha, no fim do século XIX. Hoje, seus moradores sobrevivem de pequenas plantações e criação de gado. As três aldeias culinas próximas do município – Aruanã, Macapá e Cacau – estão a 5 quilômetros do vilarejo. Os índios convivem de forma pacífica com a população. “Eles sempre estão indo e voltando da cidade para comprar comida e receber as aposentadorias que ganham do governo”, diz Paulo Rodrigues Hayden, chefe de posto da Funai em Eirunepé, próximo à região. Hayden foi o único agente da Funai que visitou a aldeia Cacau depois do crime. Para ele, não houve canibalismo. “Não há como provar”, afirma. “Eu ouvi os relatos do cacique. Ele também não acredita que tenha ocorrido canibalismo.” Quando o indianista chegou à aldeia, o corpo da vítima já havia sido enterrado. Ele não viu o cadáver e não teve acesso aos laudos do atestado de óbito. “Só posso falar do que vi e ouvi.”
BOM SELVAGEM
Índio culina faz marcas rituais em foto de 1986. A Funai diz que o canibalismo não faz parte da cultura deles
A única prova de que o assassinato foi seguido de canibalismo é o depoimento oficial de três índios culinas ao delegado da cidade. O delegado diz que há evidência adicional: um agente da Câmara Municipal filmou o cadáver e também uma índia relatando o suposto ritual antropofágico. “Tenho certeza de que não foi um animal que comeu as partes desaparecidas. Aquilo foi corte feito com facão”, diz o delegado. “Minhas testemunhas continuam afirmando que os cinco acusados comeram as partes do corpo.” O assassinato em si parece não oferecer mistério. O rapaz foi morto com cerca de 60 facadas e esquartejado, suspeita-se que por vingança. Há um ano, o pai de um dos acusados morreu afogado em um açude. Estava bêbado, mas os parentes acreditaram em assassinato. O outro componente do crime é o alcoolismo endêmico entre os culinas. Há também indícios não confirmados de que o crack tenha chegado à aldeia e esteja por trás de comportamentos violentos. “O problema é o alcoolismo. O culinas bebem todo dia. Eles precisam de ajuda”, diz Hayden, da Funai.
A antropóloga Rosa Maria Monteiro viveu entre os culinas, diz que eles bebem demais, mas não acredita que tenham comido um ser humano. “Houve uma violência muito grande, mas não canibalismo”, afirma, sem ter tido contato recente com a aldeia. A Funai divulgou uma carta oficial reforçando a tese de que o crime não foi seguido de canibalismo. De acordo com a fundação, os últimos registros de canibalismo praticado por índios datam do período colonial. Está errado. De acordo com estudos já publicados, os últimos registros de canibalismo ocorreram entre os anos 50 e 60 do século passado. Um desses casos foi a morte de um jovem nambiquara pelos índios cintas-largas em um posto telegráfico de Rondônia, no fim dos anos 1950. Outro caso envolveu seringueiros devorados por índios ricbactissas, em Mato Grosso. Nos anos 60, um ritual de canibalismo dos índios pacaás-novas foi inclusive fotografado na fronteira entre Rondônia e Bolívia.
Para o antropólogo João Dal Poz, que estudou os casos de canibalismo entre os cintas-largas e ricbactissas, esse tipo de situação ocorre sempre motivado por vingança. “O canibalismo é praticado contra um inimigo. Vingança e ódio sempre são a causa. São atos típicos de guerras e disputas”, diz ele. Mas os antropólogos e indigenistas são unânimes em afirmar que o canibalismo não é parte da cultura culina. Ivar Luiz Busatto, indigenista que trabalha na Amazônia há 30 anos, conhece bem os culinas. Diz que são índios que mantêm tradições próprias, como rituais religiosos e casas de palafitas. Ele não acredita que sejam canibais. “Em toda a documentação que se tem desses índios, não há nada que nos leve a crer que eles tiveram na história rituais de antropofagia”, afirma. Ele acha que se aconteceu de fato o canibalismo teria sido fruto de “um momento de loucura”, provocado por bebida alcoólica. O tipo de loucura que não pode ser entendida nem ocultada e – muito menos – relativizada por questões culturais. Por Juliana Arini com Thaís Ferreira – Revista Época
O assassinato de um rapaz de 21 anos no interior do Amazonas lança suspeitas de antropofagia sobre um grupo de índios da etnia culina
Um suposto caso de canibalismo na Amazônia chocou o mundo na semana passada. A rede de televisão americana CNN divulgou que no dia 1º de fevereiro cinco índios da etnia culina teriam esquartejado e devorado partes do corpo de um jovem de 21 anos na aldeia do Cacau, um povoamento a 1.200 quilômetros da capital do Estado.
Os detalhes do crime foram revelados pelo sargento e delegado da cidade de Envira, José Correia da Silva. “Primeiro, eles mataram a vítima a facadas, decapitaram e cortaram o corpo ao meio. Depois, retiraram o coração, fígado, cérebro, as vísceras, o pênis e pedaço de uma das pernas. Daí assaram e comeram essas partes”, disse Correia a ÉPOCA.
O ato foi denunciado em 2 de fevereiro por índios da própria aldeia culina, assustados com o relato de canibalismo. “Um professor indígena e o filho de um cacique de uma aldeia vizinha me procuraram para contar sobre o assassinato”, afirmou o policial. “Os responsáveis teriam voltado para a aldeia falando que mataram e comeram um cariú, como eles chamam gente não índia. Alguns culinas ficaram revoltados com o crime e me procuraram.”
A vítima, Océlio Alves de Carvalho, foi encontrada dois dias depois do crime, seu corpo em estado avançado de decomposição. O cadáver foi abandonado às margens de um igarapé, próximo à aldeia indígena Cacau. Apesar da denúncia feita pelos índios, a polícia atrasou as buscas à espera de um representante da Fundação Nacional do Índio (Funai). “Achamos a cabeça perto de uma pedra, coberta por folhas. As outras partes estavam espalhadas pelo local”, diz o policial. Nem a polícia nem a família da vítima sabem ao certo as razões que motivaram o assassinato. O jovem morto era deficiente mental e visitava com frequência a terra índigena. Seu tio, Eudo Alves Francisco, diz que antes de desaparecer Océlio andava perto da aldeia para levar uma vaca a pastar. “Os índios passaram alcoolizados pelo local e o chamaram para entrar na mata com eles. Foi aí que o mataram”, diz o delegado. “Nunca tinha ocorrido um crime desse tipo na cidade. Até eu estou chocado com o que vi.”
Isolada no extremo oeste do Amazonas, a cidade de Envira é vizinha de uma terra indígena e cercada por florestas. Distante mais de 1.000 quilômetros da capital, o município foi povoado durante o ciclo da borracha, no fim do século XIX. Hoje, seus moradores sobrevivem de pequenas plantações e criação de gado. As três aldeias culinas próximas do município – Aruanã, Macapá e Cacau – estão a 5 quilômetros do vilarejo. Os índios convivem de forma pacífica com a população. “Eles sempre estão indo e voltando da cidade para comprar comida e receber as aposentadorias que ganham do governo”, diz Paulo Rodrigues Hayden, chefe de posto da Funai em Eirunepé, próximo à região. Hayden foi o único agente da Funai que visitou a aldeia Cacau depois do crime. Para ele, não houve canibalismo. “Não há como provar”, afirma. “Eu ouvi os relatos do cacique. Ele também não acredita que tenha ocorrido canibalismo.” Quando o indianista chegou à aldeia, o corpo da vítima já havia sido enterrado. Ele não viu o cadáver e não teve acesso aos laudos do atestado de óbito. “Só posso falar do que vi e ouvi.”
BOM SELVAGEM
Índio culina faz marcas rituais em foto de 1986. A Funai diz que o canibalismo não faz parte da cultura deles
A única prova de que o assassinato foi seguido de canibalismo é o depoimento oficial de três índios culinas ao delegado da cidade. O delegado diz que há evidência adicional: um agente da Câmara Municipal filmou o cadáver e também uma índia relatando o suposto ritual antropofágico. “Tenho certeza de que não foi um animal que comeu as partes desaparecidas. Aquilo foi corte feito com facão”, diz o delegado. “Minhas testemunhas continuam afirmando que os cinco acusados comeram as partes do corpo.” O assassinato em si parece não oferecer mistério. O rapaz foi morto com cerca de 60 facadas e esquartejado, suspeita-se que por vingança. Há um ano, o pai de um dos acusados morreu afogado em um açude. Estava bêbado, mas os parentes acreditaram em assassinato. O outro componente do crime é o alcoolismo endêmico entre os culinas. Há também indícios não confirmados de que o crack tenha chegado à aldeia e esteja por trás de comportamentos violentos. “O problema é o alcoolismo. O culinas bebem todo dia. Eles precisam de ajuda”, diz Hayden, da Funai.
A antropóloga Rosa Maria Monteiro viveu entre os culinas, diz que eles bebem demais, mas não acredita que tenham comido um ser humano. “Houve uma violência muito grande, mas não canibalismo”, afirma, sem ter tido contato recente com a aldeia. A Funai divulgou uma carta oficial reforçando a tese de que o crime não foi seguido de canibalismo. De acordo com a fundação, os últimos registros de canibalismo praticado por índios datam do período colonial. Está errado. De acordo com estudos já publicados, os últimos registros de canibalismo ocorreram entre os anos 50 e 60 do século passado. Um desses casos foi a morte de um jovem nambiquara pelos índios cintas-largas em um posto telegráfico de Rondônia, no fim dos anos 1950. Outro caso envolveu seringueiros devorados por índios ricbactissas, em Mato Grosso. Nos anos 60, um ritual de canibalismo dos índios pacaás-novas foi inclusive fotografado na fronteira entre Rondônia e Bolívia.
Para o antropólogo João Dal Poz, que estudou os casos de canibalismo entre os cintas-largas e ricbactissas, esse tipo de situação ocorre sempre motivado por vingança. “O canibalismo é praticado contra um inimigo. Vingança e ódio sempre são a causa. São atos típicos de guerras e disputas”, diz ele. Mas os antropólogos e indigenistas são unânimes em afirmar que o canibalismo não é parte da cultura culina. Ivar Luiz Busatto, indigenista que trabalha na Amazônia há 30 anos, conhece bem os culinas. Diz que são índios que mantêm tradições próprias, como rituais religiosos e casas de palafitas. Ele não acredita que sejam canibais. “Em toda a documentação que se tem desses índios, não há nada que nos leve a crer que eles tiveram na história rituais de antropofagia”, afirma. Ele acha que se aconteceu de fato o canibalismo teria sido fruto de “um momento de loucura”, provocado por bebida alcoólica. O tipo de loucura que não pode ser entendida nem ocultada e – muito menos – relativizada por questões culturais. Por Juliana Arini com Thaís Ferreira – Revista Época
Um comentário:
17/02 - Farc são acusadas de matar 27 índios em uma semana
DA REDAÇÃO - Folha de São Paulo
Ao menos dez indígenas da etnia awá foram assassinados na madrugada de anteontem no sul da Colômbia, segundo lideranças indígenas e o governo do departamento (Estado) de Nariño. As vítimas se somam a outros 17 awá mortos na semana passada -as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) são as mais fortes suspeitas de serem autoras do massacre.
Texto completo
Ontem, o Exército colombiano chegou à região de selva, mas não havia encontrado os corpos. Segundo a Onic (Organização Nacional Indígena da Colômbia), os dez índios foram mortos enquanto fugiam da primeira matança.
A entidade também atribuiu as novas mortes às Farc. A organização humanitária Human Rights Watch (HWR) disse ter sabido que guerrilheiros também sequestraram crianças. Ontem o grupo Colombianos pela Paz, que tenta negociar com a guerrilha, instou as Farc a se pronunciar sobre o caso.
Os awá são cerca de 30 mil e vivem entre a Cordilheira dos Andes e o Pacífico, rota de saída de cocaína e zona de conflito entre guerrilheiros, paramilitares e soldados. São acusados pelas Farc e pelo Exército de não colaborar. O ministro da Defesa, Juan Manuel Santos, anunciou viagem ao local.
Ontem, na fronteira com a Venezuela, seis pessoas morreram após a explosão de um artefato na cidade de Convención. A polícia atribuiu o atentado às Farc.
Com agências internacionais
JP-SBO
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