"Eles se instalam na beira de umas lagoas, sem água nem luz, mas a prefeitura vem e tira o pessoal porque é área de preservação" - por Miguel Alves do Nascimento (presidente da associação dos moradores do bairro Nova Cidade)
Pedro de Souza, índio macuxi, e sua família vivem no bairro de Nova Cidade, sustentados por três aposentadorias
Na periferia de Boa Vista, a agradável capital de Roraima, é possível comprovar um reflexo direto da arrastada disputa pelas terras na área indígena de Raposa Serra do Sol. A oito quilômetros do centro, acomodados entre os bairros de Nova Cidade e Brigadeiro, há centenas de famílias indígenas que deixaram a reserva por causa de incidentes derivados da briga pela posse da terra, cuja extensão total soma 1,75 milhão de hectares espalhados pela fronteira brasileira com a Venezuela e a Guiana.
Leia também no texto-oculto
CRIAÇÃO DE NOVA RESERVA É TEMA POLÊMICO
O Estado de Roraima tem a maior parte do seu território ocupado por áreas indígenas. São 46% do total. Mas o tamanho das terras indígenas pode aumentar ainda mais.
A família de Pedro de Souza, 73 anos, é um exemplo da "diáspora" dos índios macuxi, etnia dominante nas 200 comunidades da Raposa Serra do Sol. Primeiro do clã a sair da reserva, há dez anos, o índio afirma ter cansado das disputas e da pressão interna na comunidade do Contão, a 240 km de Boa Vista, para que abandonasse o trabalho com pecuaristas "não índios" estabelecidos na região. "Eles diziam que eu não podia mais trabalhar para os brancos, que estava sendo explorado e os brancos iam ter que sair da Raposa", diz. "Achei melhor sair, trazer a família e ficar em paz, sem confusão nem briga com os irmãos". Mesmo ressentido com a maneira como saiu das terras dos antepassados, Pedro não pretende voltar. "Agora, não dá mais. Eles que fiquem lá, que eu fico aqui".
Depois de conseguir a aposentadoria, Pedro trouxe a mãe nonagenária, dois filhos, uma irmã e três sobrinhas para morar na capital. Vive em uma casa de madeira na rua Natal do bairro Nova Cidade, um localidade de 15 mil habitantes criada em 1992 para abrigar militares do Batalhão de Engenharia e Construção do Exército. Mesmo com a determinação de deixar para trás as contendas indígenas e inter-raciais, o índio não conseguiu convencer outros três filhos a acompanhá-lo na retirada. "Eles estão lá, vivendo do que dá. Mas agora que o governo vai tirar os brancos da Raposa, quero ver como eles vão fazer", diz. "Quero trazer os três, mas é difícil".
A família se sustenta com a aposentadoria de Pedro, de sua mãe e de sua irmã. O filho caçula, Rangel Cruz de Souza, 25 anos e quatro filhos, trabalha como servente de pedreiro e auxiliar de serviços gerais desde 2002, quando deixou a reserva para "melhorar de vida". "Mas trabalho só quando aparece um servicinho. Nessa Semana Santa está tudo parado", diz o índio que estudou até a 4ª série do ensino fundamental ainda na escola da Raposa Serra do Sol.
Algumas ruas adiante, mais precisamente na avenida Porto Velho, uma estreita passagem de chão batido e arenoso, moram a índia macuxi Fátima Gonçalves e o piauiense Luiz Gonzaga da Conceição. Garimpeiro, o homem conhecido como "Piauí" trocou a maloca onde vivia com a mulher, na comunidade de Mutum, próxima ao rio Maú, marco da fronteira entre Brasil e Guiana, para virar dono de um bar no Nova Cidade. "Saímos de lá em 1997 por causa de uma briga em que tocaram fogo nas balsas do pessoal", lembra Fátima, 45 anos e quatro filhos.
Mesmo tendo saído da reserva, Fátima tem parentes na região da Reserva. A prima é "tuxaua" (líder) em Mutum e outras duas irmãs permanecem em Raposa. "Minha prima esteve aqui na semana passada e disse que a polícia está tirando todos os brancos de lá", relata. Para ela, a situação da reserva deveria ser resolvida com uma solução pacífica. "Eles deram prazo para os brancos saírem de lá, mas acho que vai continuar a ter problema porque tem uma parte dos índios que quer os brancos lá e outra parte que não quer de jeito nenhum".
O presidente da associação dos moradores do bairro Nova Cidade, o maranhense Miguel Alves do Nascimento relata que toda semana aparecem novas famílias indígenas em busca de casa e abrigo na região. "Eles se instalam na beira de umas lagoas que têm aí, mas a prefeitura vem e tira o pessoal porque é área de preservação", diz. O líder afirma que a situação preocupa a todos porque as condições de vida nessas áreas marginais são mínimas. "Eles vivem na beira da lagoa, sem água nem luz". A reportagem abordou moradores das áreas em dois dias diferentes para saber se as pessoas tinham vindo recentemente da região do conflito, mas os moradores desconversavam, não admitiam conhecer ninguém da Raposa. "É o medo da prefeitura vir e retirar quem já está aqui", diz Nascimento.
Mesmo assim, há quem se arrisque. Ex-vice-prefeito de Uiramutã, município situado dentro da reserva, João Tropeiro coordena uma espécie de abrigo para índios recém-chegados de Raposa. Sem muito contato com a população local, o político auxilia os indígenas a encaminhar papéis e a pedir benefícios como o Bolsa-Família.
O presidente da federação das associações de bairro de Boa Vista, Faradilson Mesquita, entende que o governo federal desconsiderou essa "diáspora" ao tomar medidas de apoio aos índios. Ligado a grupos políticos favoráveis à permanência de "não índios" na Raposa, ele critica o Supremo Tribunal Federal (STF), os governos estadual e federal. "Essas medidas compensatórias deveriam ser tomadas por quem tem conhecimento de causa, não de gabinetes de Brasília." Mauro Zanatta -Valor Econômico
CRIAÇÃO DE NOVA RESERVA É TEMA POLÊMICO
O Estado de Roraima tem a maior parte do seu território ocupado por áreas indígenas. São 46% do total. Mas o tamanho das terras indígenas pode aumentar ainda mais. Dos 6 milhões de hectares destinados pela União ao governo estadual para "compensar" a criação da Raposa Serra do Sol, pelo menos 2 milhões podem ser reivindicados pela Fundação Nacional do Índio (Funai) para eventual demarcação da terra indígena Anaru, que reuniria parte das etnias originárias do Estado.
A simples possibilidade de criação de uma nova reserva levanta enorme polêmica. As feridas do complexo processo de homologação de Raposa Serra do Sol seguem abertas. "Não podemos nem pensar em engessar ainda mais o Estado. Basta dessas amarras", diz o presidente da federação estadual de Agricultura e Pecuária, Almir Sá. Os 1,75 milhão de hectares da área demarcada na Raposa equivalem a mais de dez vezes o tamanho do município de São Paulo. E a reserva Ianomâmi é ainda maior: quase 10 milhões de hectares. "Direito é direito", diz o bispo de Roraima, dom Roque Paloschi.
O secretário estadual do Índio, Jonas Marcolino, entende que a demarcação não garante qualidade de vida para os índios. Fundador da Sociedade de Defesa dos Índios Unidos do Norte de Roraima, ele prega a melhoria da infraestrutura e das condições de saúde e educação dos povos indígenas da região. "Criar reservas e deixar os índios amontoados, isolados, não resolve. Os ianomâmi estão lá para provar a falência desse modelo de colonização feito pela Funai."
Em 1991, o governo federal já havia homologado a reserva São Marcos, uma área contígua às terras Ianomâmi e da Raposa Serra do Sol. De lá para cá, porém, ainda perduram questionamentos jurídicos e disputas na Justiça. O município de Pacaraima, na fronteira com a Venezuela, deixaria de existir, segundo as regras da demarcação em vigor desde então. "Já imaginou retirar aquelas nove ou dez mil pessoas de suas casas?", pergunta o ex-prefeito Paulo César Quartiero, líder da "resistência" dos produtores rurais à homologação da Raposa Serra do Sol. (MZ). Valor Econômico
Pedro de Souza, índio macuxi, e sua família vivem no bairro de Nova Cidade, sustentados por três aposentadorias
Na periferia de Boa Vista, a agradável capital de Roraima, é possível comprovar um reflexo direto da arrastada disputa pelas terras na área indígena de Raposa Serra do Sol. A oito quilômetros do centro, acomodados entre os bairros de Nova Cidade e Brigadeiro, há centenas de famílias indígenas que deixaram a reserva por causa de incidentes derivados da briga pela posse da terra, cuja extensão total soma 1,75 milhão de hectares espalhados pela fronteira brasileira com a Venezuela e a Guiana.
Leia também no texto-oculto
CRIAÇÃO DE NOVA RESERVA É TEMA POLÊMICO
O Estado de Roraima tem a maior parte do seu território ocupado por áreas indígenas. São 46% do total. Mas o tamanho das terras indígenas pode aumentar ainda mais.
A família de Pedro de Souza, 73 anos, é um exemplo da "diáspora" dos índios macuxi, etnia dominante nas 200 comunidades da Raposa Serra do Sol. Primeiro do clã a sair da reserva, há dez anos, o índio afirma ter cansado das disputas e da pressão interna na comunidade do Contão, a 240 km de Boa Vista, para que abandonasse o trabalho com pecuaristas "não índios" estabelecidos na região. "Eles diziam que eu não podia mais trabalhar para os brancos, que estava sendo explorado e os brancos iam ter que sair da Raposa", diz. "Achei melhor sair, trazer a família e ficar em paz, sem confusão nem briga com os irmãos". Mesmo ressentido com a maneira como saiu das terras dos antepassados, Pedro não pretende voltar. "Agora, não dá mais. Eles que fiquem lá, que eu fico aqui".
Depois de conseguir a aposentadoria, Pedro trouxe a mãe nonagenária, dois filhos, uma irmã e três sobrinhas para morar na capital. Vive em uma casa de madeira na rua Natal do bairro Nova Cidade, um localidade de 15 mil habitantes criada em 1992 para abrigar militares do Batalhão de Engenharia e Construção do Exército. Mesmo com a determinação de deixar para trás as contendas indígenas e inter-raciais, o índio não conseguiu convencer outros três filhos a acompanhá-lo na retirada. "Eles estão lá, vivendo do que dá. Mas agora que o governo vai tirar os brancos da Raposa, quero ver como eles vão fazer", diz. "Quero trazer os três, mas é difícil".
A família se sustenta com a aposentadoria de Pedro, de sua mãe e de sua irmã. O filho caçula, Rangel Cruz de Souza, 25 anos e quatro filhos, trabalha como servente de pedreiro e auxiliar de serviços gerais desde 2002, quando deixou a reserva para "melhorar de vida". "Mas trabalho só quando aparece um servicinho. Nessa Semana Santa está tudo parado", diz o índio que estudou até a 4ª série do ensino fundamental ainda na escola da Raposa Serra do Sol.
Algumas ruas adiante, mais precisamente na avenida Porto Velho, uma estreita passagem de chão batido e arenoso, moram a índia macuxi Fátima Gonçalves e o piauiense Luiz Gonzaga da Conceição. Garimpeiro, o homem conhecido como "Piauí" trocou a maloca onde vivia com a mulher, na comunidade de Mutum, próxima ao rio Maú, marco da fronteira entre Brasil e Guiana, para virar dono de um bar no Nova Cidade. "Saímos de lá em 1997 por causa de uma briga em que tocaram fogo nas balsas do pessoal", lembra Fátima, 45 anos e quatro filhos.
Mesmo tendo saído da reserva, Fátima tem parentes na região da Reserva. A prima é "tuxaua" (líder) em Mutum e outras duas irmãs permanecem em Raposa. "Minha prima esteve aqui na semana passada e disse que a polícia está tirando todos os brancos de lá", relata. Para ela, a situação da reserva deveria ser resolvida com uma solução pacífica. "Eles deram prazo para os brancos saírem de lá, mas acho que vai continuar a ter problema porque tem uma parte dos índios que quer os brancos lá e outra parte que não quer de jeito nenhum".
O presidente da associação dos moradores do bairro Nova Cidade, o maranhense Miguel Alves do Nascimento relata que toda semana aparecem novas famílias indígenas em busca de casa e abrigo na região. "Eles se instalam na beira de umas lagoas que têm aí, mas a prefeitura vem e tira o pessoal porque é área de preservação", diz. O líder afirma que a situação preocupa a todos porque as condições de vida nessas áreas marginais são mínimas. "Eles vivem na beira da lagoa, sem água nem luz". A reportagem abordou moradores das áreas em dois dias diferentes para saber se as pessoas tinham vindo recentemente da região do conflito, mas os moradores desconversavam, não admitiam conhecer ninguém da Raposa. "É o medo da prefeitura vir e retirar quem já está aqui", diz Nascimento.
Mesmo assim, há quem se arrisque. Ex-vice-prefeito de Uiramutã, município situado dentro da reserva, João Tropeiro coordena uma espécie de abrigo para índios recém-chegados de Raposa. Sem muito contato com a população local, o político auxilia os indígenas a encaminhar papéis e a pedir benefícios como o Bolsa-Família.
O presidente da federação das associações de bairro de Boa Vista, Faradilson Mesquita, entende que o governo federal desconsiderou essa "diáspora" ao tomar medidas de apoio aos índios. Ligado a grupos políticos favoráveis à permanência de "não índios" na Raposa, ele critica o Supremo Tribunal Federal (STF), os governos estadual e federal. "Essas medidas compensatórias deveriam ser tomadas por quem tem conhecimento de causa, não de gabinetes de Brasília." Mauro Zanatta -Valor Econômico
CRIAÇÃO DE NOVA RESERVA É TEMA POLÊMICO
O Estado de Roraima tem a maior parte do seu território ocupado por áreas indígenas. São 46% do total. Mas o tamanho das terras indígenas pode aumentar ainda mais. Dos 6 milhões de hectares destinados pela União ao governo estadual para "compensar" a criação da Raposa Serra do Sol, pelo menos 2 milhões podem ser reivindicados pela Fundação Nacional do Índio (Funai) para eventual demarcação da terra indígena Anaru, que reuniria parte das etnias originárias do Estado.
A simples possibilidade de criação de uma nova reserva levanta enorme polêmica. As feridas do complexo processo de homologação de Raposa Serra do Sol seguem abertas. "Não podemos nem pensar em engessar ainda mais o Estado. Basta dessas amarras", diz o presidente da federação estadual de Agricultura e Pecuária, Almir Sá. Os 1,75 milhão de hectares da área demarcada na Raposa equivalem a mais de dez vezes o tamanho do município de São Paulo. E a reserva Ianomâmi é ainda maior: quase 10 milhões de hectares. "Direito é direito", diz o bispo de Roraima, dom Roque Paloschi.
O secretário estadual do Índio, Jonas Marcolino, entende que a demarcação não garante qualidade de vida para os índios. Fundador da Sociedade de Defesa dos Índios Unidos do Norte de Roraima, ele prega a melhoria da infraestrutura e das condições de saúde e educação dos povos indígenas da região. "Criar reservas e deixar os índios amontoados, isolados, não resolve. Os ianomâmi estão lá para provar a falência desse modelo de colonização feito pela Funai."
Em 1991, o governo federal já havia homologado a reserva São Marcos, uma área contígua às terras Ianomâmi e da Raposa Serra do Sol. De lá para cá, porém, ainda perduram questionamentos jurídicos e disputas na Justiça. O município de Pacaraima, na fronteira com a Venezuela, deixaria de existir, segundo as regras da demarcação em vigor desde então. "Já imaginou retirar aquelas nove ou dez mil pessoas de suas casas?", pergunta o ex-prefeito Paulo César Quartiero, líder da "resistência" dos produtores rurais à homologação da Raposa Serra do Sol. (MZ). Valor Econômico
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