Direitos e loteria

De priscas eras, uma questão comum, nos regimes de democracia imperfeita, eram os abusos de direito dos governantes e autoridades em geral. Quem leu Antígona, de Sófocles, sabe do conflito entre direito estatuído e direito natural, invocado esse pelo autor da tragédia, ante o decreto de Creonte, que proibiu aquela personagem de sepultar o irmão. O direito estatuído era, então, o poder dos governos, democráticos ou não.

O direito natural de Antígona era o dos oprimidos. Tal polêmica chegou aos novos tempos, no caso Dreyfus, contra o conselho de guerra que o condenou, e na Segunda Guerra Mundial, para explicar a reação francesa ao regime Petain e à ocupação alemã, como conta Simone Fraisse, em “Antígona, a politização do mito” (Dicionário literário de mitos, de Pierre Brunel).

Pois é. Hoje, dá-se o pior. Com a estranha tese do diploma liberticida da livre imprensa à parte, viola-se o direito escrito nas democracias, por truques que os governos usam, para não cumpri-lo, quando isso não lhes convêm. Por Rubem Azevedo Lima


Eis dois exemplos disso no Brasil: a dilação no pagamento de precatórios e o veto às CPIs legislativas. Nesses casos, seja qual for o viés do chefe político nos municípios, estados e na União, tais direitos são habitualmente sonegados tanto aos credores quanto aos opositores.

Mantém-se essa mistificação de democracia, para inglês ver, graças à conivência da sociedade em geral e à leniência das instituições jurídicas, em particular. Aquela parece preferir o ato delituoso do governo ao dos legisladores, agora muito desacreditados perante a opinião pública; as últimas, por sua vez, dão sinais de acomodação ao peso de milhões de processos; por não terem meios para agir ou pelo fato de estarem cansadas de advertir, inutilmente, governos populares e fortes.

Ninguém sabe no que essa falsificação antidemocrática resultará para os brasileiros. De qualquer modo, todos devem saber que, hoje, estão menos protegidos de outras violações possíveis a seus direitos individuais ou sociais. Restam-lhes torcer, paranoica e egoisticamente — como as ditaduras gostam —, para que tal prática atinja antes os direitos do outros, mas acabe poupando os seus, nessa triste loteria de transgressões. Correio Braziliense –

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