Conexão pirata com os bolivianos

ROTA DE CONTRABANDO E NARCOTRÁFICO

Região na fronteira do Brasil serve de entreposto de remédios falsos, vendidos no balcão de farmácias.

Cáceres (MT) e San Mathias (Bolívia) — Conhecendo os limites entre o Brasil e a Bolívia, entende-se porque a região se tornou uma das principais rotas do contrabando de remédios falsificados ou proibidos no Brasil. São quase mil quilômetros de fronteira seca, com inúmeras estradas clandestinas.

Na terceira reportagem da série Cura Falsificada, o Correio/Estado de Minas revela a facilidade de comprar medicamentos na fronteira. A reportagem passou três dias na cidade boliviana de San Mathias e no município brasileiro de Cáceres para apurar o esquema de remédios ilegais. Ali, há extorsão de soldados bolivianos, ameaças de roubo e propostas para transportar mercadorias. É simples e barato comprar remédios. E não se encontra fiscalização eficiente. Por Renato Alves, Enviado especial

De Cáceres até San Mathias são 80km pela BR-070. Não há povoados, posto de combustível ou qualquer loja ao longo da via. Apenas na saída da cidade matogrossense, ainda antes do trevo de acesso à estrada que leva a San Mathias, existe um posto fixo da Polícia Rodoviária.

Além do pantanal e dos rebanhos de gado, a BR-070 é marcada pelos buracos. Caminhões carregados com madeira extraída na Bolívia cortam a estrada. A um quilômetro da fronteira, fica o destacamento do Corixo, do Exército Brasileiro, onde acaba a BR-070 e o asfalto. O serviço de guarda cabe aos policiais militares e civis de Mato Grosso, integrantes do Grupo Especial de Segurança de Fronteira (Gefron).

Em um posto feito de madeira e coberto de palha, montado em uma estrada de terra batida a 800m do quartel do Exército, sem também a companhia de policiais federais, um PM e um agente da Polícia Civil pedem documentos a quem entra e sai do país. Ao lado do posto do Gefron, fica uma unidade abandonada da Receita e trailler da Anvisa, com dois agentes de saúde preocupados com a gripe suína.

Em San Mathias, uma miniatura do Cristo Redentor dá as boas vindas a quem vem do Brasil. A imagem dá nome ao clube de futebol local, o Cristo Rei, que joga em um campo gramado, sem arquibancada ou iluminação, como os de qualquer povoado brasileiro. Mas o estádio é um dos orgulhos de San Mathias. O outro é a praça central, com a bandeira do país, bancos de madeira, imagens quebradas de anjos e uma fonte sem água.

Ali, os cidadão se encontram, os mais velhos descansam, as crianças brincam e criminosos oferecem remédios ilegais e cocaína aos brasileiros que cruzam a fronteira e param. Tudo em frente ao batalhão policial. O brasileiro que se atreve a descer do carro e parar na praça central ou alguma rua está sujeito à abordagem dos militares. Pedem, sem cerimônia, propinas para evitar a revista.

A reportagem esteve nas drogarias da cidade boliviana. Uma delas funciona no que seria a sala de uma casa. Em todas, são encontrados medicamentos proibidos no Brasil, mas destinados principalmente a brasileiros que os revendem no país de origem, segundo a dona de uma das farmácias.

Os campeões de venda para os brasileiros são os similares do Viagra. O mais popular é o Procop-50. A caixa vem com 10 pílulas azuis de 50mg cada e sai ao equivalente a R$ 17. “Lá no Brasil, você pode vender por R$ 10 cada (comprimido)”, comentou a mulher que se apresentou como Maria e disse ter “bons” clientes do outro lado da fronteira. Detalhe: a pintura de uma das caixas mostradas pela vendedora descascava com o passar da unha e o comprimido não tinha marca impressa.

Numa outra farmácia, a mulher do balcão ofereceu o La Santes e o Rigix, com cápsulas do mesmo tamanho do Procop-50. A unidade saía a R$ 5. No entanto, ela destacou que se o cliente quisesse levar maior quantidade, mandaria trazer uma encomenda de Santa Cruz de La Sierra, a 600km de distância. “Demora uma semana. O senhor deixa o nome que eu mando buscar. Se for muito fica mais barato. Até R$ 2 a pílula”, explicou.

Policiais
Ônibus, caminhonetes, táxis, motos e bicicletas cruzam livremente o único posto de controle do exército boliviano em San Mathias, na direção de Mato Grosso. Do lado brasileiro, é pífio o número de policiais para fiscalizar tudo e todos. Sem contingente suficiente e equipamentos adequados, integrantes do Gefron matogrossense contam com a sorte para barrar criminosos e mercadorias ilegais.

As prisões de traficantes de cocaína também com grande quantidade de remédios na bagagem, no carro ou no corpo, levaram o Ministério Público Federal em Mato Grosso a dar início a uma investigação em Cáceres, ano passado. Ela resultou na Operação Salus — em referência à deusa grega da saúde. Desencadeada em 29 de setembro, a ação conjunta com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a Polícia Federal culminou no fechamento de sete farmácias, na prisão de cinco donos dos estabelecimentos e apreensão de mais de 500kg de medicamentos adulterados ou sem registro, como o Procop-50.

Para a procuradora da República Vanessa Christhina Marconi Zago, que comandou a Operação Salus, Cáceres se tornou porta de entrada para medicamentos ilegais por causa da grande extensão de fronteira seca com a Bolívia, falta de fiscalização e de consciência da população. “A população não vê o medicamento ilegal como uma droga, como algo maléfico”, diz.

Desde Brasília
A BR-070 é uma rodovia federal brasileira que começa em Brasília e termina em Porto Corixo, na cidade de Cáceres (MT), fronteira com a Bolívia. Passa pelo Distrito Federal e por Goiás e Mato Grosso.

Barões da coca
Com 1,5 milhão de habitantes, a cidade mais rica da Bolívia é reduto dos grandes grupos de traficantes. Lá são fechados os principais negócios e decidida a distribuição dos maiores carregamentos de cocaína.

Atuação
O secretário de Segurança de Mato Grosso, Diógenes Filho, reconhece a vulnerabilidade da fronteira da região oeste do estado. Mas ressalta que, em cinco anos de atuação, o Gefron levou ao aumento de 1.000% no volume de veículos recuperados, 3.300% no de drogas apreendidas e 400% no de armas recolhidas. Correio Braziliense

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