Itaipu ... e mais

Mais um episódio fosco na história das relações econômico-diplomáticas brasileiras, foi a capitulação da chancelaria nacional às descabidas exigências paraguaias sobre Itaipu.

O tratado que instituiu a binacional e permitiu a construção, integralmente financiada pelo Brasil, da usina era um delicado instrumento de equilíbrio que levou à realização do empreendimento e sua operação com resultados benéficos para ambos países. Pois se a usina gera mais de 20% da eletricidade consumida no sudeste do Brasil, gera igualmente a quase totalidade da que é consumida pelo Paraguai, além de mais de um quinto do orçamento do país vizinho.

O lugar da construção causou na época grande controvérsia no Brasil, onde opiniões ponderáveis insistiam em fazer a usina rio acima, totalmente em território nacional. A decisão sobre o local, mais do que a um pequeno aumento de potência, deveu-se ao fato de que, no período em que o Brasil começou a estudar mais a fundo a exploração do potencial energético da região, o Paraguai preparava-se para levantar um problema de limites, aguçado pela posse pelo Brasil da ilha de Itaipu (que até 1865 era paraguaia) e pela falta de demarcação definitiva de uma parte da fronteira. Por Marcio de Oliveira Dias *

Embora a pequena porção de território que poderia ser motivo de disputa fosse pouco significativa, o Brasil não tinha interesse em entrar num conflito que seria desgastante para ambos países e que poderia até mesmo eventualmente vir a ser dirimido, por arbitragem internacional, em favor do Paraguai. Por outro lado, o Brasil tinha um legítimo interesse em contribuir para o desenvolvimento paraguaio e permitir que o país escapasse da sufocante influência de outro vizinho. Assim, teria ocorrido ao então embaixador em Assunção, e posteriormente grande chanceler brasileiro Mario Gibson Barboza a idéia de “submergir o conflito”, com a inundação, para a formação do lago da represa, da zona objeto de contestação.

Com toda a carga financeira recaindo sobre o Brasil, era imprescindível que a iniciativa fosse protegida por um Tratado que, embora generoso para com o Paraguai, preservasse os mais que legítimos interesses brasileiros, e assim foi feito. A construção da usina trouxe tranqüilidade energética ao Brasil e recursos ao Paraguai, ainda que os benefícios de Itaipu não tenham sido exatamente bem distribuídos entre a sua população...

Evidentemente sempre houve vozes paraguaias que clamavam por mais benefícios para o seu país, passando por cima do fato de que o total do investimento foi brasileiro e que o Paraguai terá contribuído apenas com uma margem do rio. Mas isso pode ser considerado inevitável em situações similares.

Com o fim do domínio político do país pelo Partido Colorado – precipitado por uma série de desmandos que têm na origem a tentativa de um golpe militar contra Wasmosy (até agora o único presidente eleito paraguaio que passou o poder a um sucessor igualmente eleito) e que incluem o assassinato do vice-presidente, a deposição de um presidente ligado aos golpistas e a entrega – que deveria ser temporária, mas durou todo um mandato- do poder a um politicamente inexpressivo presidente ocasional da Câmara dos Deputados, chegou à presidência o bispo Fernando Lugo, a bordo de uma heterodoxa coalizão de forças oposicionistas.

Lugo usou como fácil bandeira de campanha a revisão do Tratado de Itaipu, objetivo que embora buscasse violar um instrumento jurídico perfeito, era de fácil absorção pelos inflamados opositores paraguaios. Após sua eleição, e premido por circunstâncias, digamos, “peculiares”, de sua vida pessoal, caiu na defensiva e acalmou temporariamente seus ímpetos revisionistas.

Entretanto, veio em seu socorro justamente o “inimigo”, o Brasil. O que é, para dizer o mínimo, esquizofrênico. Pois Lugo, se conhece bem a história recente de seu país, certamente sabe que só está na chefia do executivo paraguaio porque a ação oportuna e firme do governo Fernando Henrique Cardoso – da qual tenho grande orgulho profissional e pessoal de, como Embaixador em Assunção naquele momento, haver sido o agente direto- frustrou, em 1996, um golpe militar que já estava praticamente consolidado e permitiu a sobrevivência da jovem democracia paraguaia, ipso facto a continuidade do processo que acabou por levá-lo ao comando da nação. Este episódio, aliás, foi até hoje mantido em relativo segredo para preservar os representantes de então das instituições paraguaias, mas agora, passados já mais de treze anos e com os dramatis personae relativamente afastados da ribalta política guarani, bem poderá ser dado a público, tarefa da qual pretendo desincumbir-me em breve.

Quando Gibson Barboza – homem que pensava grande e cuja formação diplomática preferia a negociação à confrontação – concebeu a idéia de “submergir o conflito”, baseava-se na convicção de que o Brasil era uma potência regional e como tal se comportaria. E não poderia nem de longe imaginar que, anos depois, a tibieza de um chanceler virtual (Amorim) aliada à motivação ideologicamente deformada de um inesperado chanceler “real” (Garcia) viessem a, por motivos secundários, sacrificar o legítimo interesse nacional em benefício de ganhos políticos para um “companheiro” estrangeiro momentaneamente atrapalhado por aventuras galantes de um passado muito pouco episcopal.

Aberta pela irresponsabilidade ideológica da chancelaria brasileira a Caixa de Pandora, certamente teremos de conviver daqui por diante com uma inesgotável série de absurdas reivindicações dos vizinhos quanto a Itaipu, dando razão aos mais acerbos críticos da construção da usina naquele local. E fazendo com que uma decisão inteligente de política externa brasileira na ocasião viesse a apresentar potenciais aspectos futuros dos mais inconvenientes, tudo por exclusiva culpa de ações do próprio governo brasileiro atual, movido por exóticas motivações ideológicas alheias ao real interesse nacional.

E é neste ponto que faço uma pergunta que já fiz, sem obter resposta convincente, a políticos e juristas: com que base legal o Presidente (diretamente ou através de um ou de ambos seus ministros de Relações Exteriores) perdoa dívidas de países para com o Brasil, aumenta o valor de pagamentos brasileiros estipulados em tratados, em suma, age a seu bel prazer como se os recursos e o Tesouro da nação fossem de sua propriedade pessoal? Já vimos em passado recente e em várias ocasiões o presidente Lula, por ocasião de visitas de Estado a países africanos (sem falar no vergonhoso episódio do gás boliviano) perdoar dívidas por um gesto unilateral seu. Com que base legal? Com autorização de que Congresso? Quem bancará tal generosidade de fundo ideológico? E por favor não insultem a inteligência do nosso povo ao dizer que tais benesses concedidas aos “companheiros” não implicarão em custo adicional para o consumidor brasileiro.

Existe ainda outro aspecto extremamente grave a considerar. As sandices cometidas ultimamente pela diplomacia brasileira, dentre as quais a abertura de postos absolutamente irrelevantes e que sequer são preenchidos corretamente e a política externa cambiante do país, que não se define e procura agradar a gregos e troianos, como bem acentuou na sua última edição a conceituada revista britânica The Economist, têm como justificativa mal disfarçada a campanha que o país estaria desenvolvendo para, numa eventual reforma da ONU, vir a ocupar uma cadeira de membro permanente do Conselho de Segurança. Como se os países que tem esse “status” estivessem dispostos a partilhá-lo pelos belos olhos da diplomacia brasileira...

E o mais grave – e óbvio – é que a diplomacia que deseja assumir um papel de potência mundial com a ocupação de uma cadeira de membro permanente do Conselho sequer mostra-se capacitada a exercer a função de potência regional que a geografia e o tamanho de sua economia praticamente lhe impõem. Pois se com a tibieza mostrada com relação aos arroubos dos “companheiros” Morales e Lugo – além da extrema tolerância com os desmandos do “companheiro” Chavez – a política externa do Governo Lula demonstra claramente a sua absoluta falta de vocação para uma liderança regional, bem se pode imaginar qual seria sua atitude numa crise mundial que exigisse um mínimo de energia e firmeza por parte de um membro permanente do Conselho de Segurança.

Ora, nem o chanceler virtual nem o chanceler real podem ser acusados de ingenuidade. Muito pelo contrário, até. Assim, estão fartos de saber que a possibilidade do Brasil vir a ser contemplado com uma cadeira de membro permanente do Conselho é praticamente nula. O que pode dar corpo a uma teoria, que, se a princípio parecia algo “conspiratória”, à vista dos últimos fatos, dá indícios de não ser necessariamente absurda, de que os recentes esforços e consideráveis gastos da diplomacia brasileira destinem-se, em realidade, não à finalidade utópica da cadeira de membro permanente do Conselho de Segurança, mas sim ao objetivo bastante mais pedestre de garantir para os seus chefes (talvez até mesmo para o “nosso guia” ) uma boa sinecura internacional, uma vez terminado o mandato deste governo. Que tanto fez, política e administrativamente, para arrasar as melhores tradições da casa de Rio-Branco.

* Marcio de Oliveira Dias é diplomata de carreira e foi embaixador do Brasil em Assunção de novembro de 1995 a fevereiro de 1998.
JB online


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