É surrealista a manutenção de caríssimas estruturas governamentais destinadas ao programa nacional de reforma agrária
O lançamento do Censo Agropecuário 2006 gerou monótona repercussão impressionista e nenhuma análise. Comparados com o censo anterior, algumas facetas foram meramente descritas, como a expansão dos estabelecimentos com eletricidade, o vigoroso crescimento da soja ou a forte redução no pessoal ocupado, entre outras transformações que são de imensa relevância. O principal dado divulgado, porém, reitera a assimétrica distribuição da propriedade da terra, pois os índices de Gini que aferem essa concentração estão entre os mais altos do planeta.
O outro foco repetido, incensado sob espantosa ingenuidade, refere-se à agricultura familiar, agrupamento que seria oposto a um indefinido agronegócio. Resultado de uma sociologia indigente e de um primário marxismo caiopradista, a noção é igualmente um delírio ideológico, pois seria segmentação que, assim se diz, estimularia a luta de classes no campo. Por Zander Navarro
Mas não vivemos em Bizâncio, e mais rigor é preciso.
O censo certamente incentivará estudos reveladores de significativas mudanças no mundo rural brasileiro, sobretudo nas últimas duas décadas. Ressalto como mais relevantes três aspectos, talvez os principais.
O fato mais decisivo se refere à inédita monetarização que hoje determina a vida social rural, deixando para o passado o paroquialismo comunitário, a busca do autoconsumo e o padrão produtivo movido só por aumento da área plantada, marcas antes tão entranhadas na história rural.
O censo é enfático, acentuando que 55% do total dos estabelecimentos responderam por 81% do valor da produção, também sinalizando a crescente especialização e profissionalização dos produtores e a dominação, agora, de um princípio férreo de produtividade. Goste-se ou não, é a consagração definitiva de uma sociabilidade capitalista que passou a comandar o cotidiano rural.
O segundo tema nos remete à agricultura familiar. Esta é uma expressão meramente descritiva, mas não um conceito. Não está associada a nenhuma teoria do desenvolvimento rural nem embute comportamentos sociais virtuosos, como certos grupos parecem acreditar.
Surgiu nos anos 90 exclusivamente para democratizar o acesso ao crédito rural e, dessa forma, enraizar ainda mais aquela sociabilidade. Ante tal objetivo, a oposição citada se torna ainda mais ilusória, pois todos os produtores se integram ao agronegócio (ou seja, aos circuitos mercantis), embora sob formas distintas.
Que grupos de esquerda julguem que um arbitrário corte empírico, ainda que definido em lei, possa separá-los entre "puros e progressistas", de um lado, e "diabólicos capitalistas reacionários", do outro, é parte do bestialógico autenticamente nacional. Surpreende, assim, a decisão de preparar um censo específico para os familiares, um indicativo, novamente, de nossas insuficiências analíticas.
Finalmente, sobre a estrutura agrária brasileira, ainda insistimos na denúncia de fantasmagóricos latifúndios improdutivos, seguindo uma leitura míope que ecoa os anos 50. Não se trata de brigar com números, pois é indesmentível a concentração da propriedade. Mas duas ressalvas são cruciais.
Primeiro, a propriedade rural não é mais a causa fundante das desigualdades sociais e políticas, que hoje são processos sobretudo urbanos. Os produtores rurais, de fato, são atualmente elo subordinado das cadeias produtivas, sendo marginal na economia brasileira a fração dos grandes proprietários fundiários e sua riqueza.
Segundo, ainda que uma mágica propusesse uma radical transformação agrária, não haveria cidadãos interessados em retornar ao campo, pela mesma razão da urbanização.
Ou seja, é surrealista a manutenção de caríssimas estruturas governamentais destinadas ao programa nacional de reforma agrária, inexistindo demanda socialmente significativa. O futuro é inescapável: manteremos no campo uma conformação heterogênea e dual, sem ser dualista, com propriedades em grande escala convivendo com propriedades de menor porte. Houvesse racionalidade, a principal diretriz governamental deveria inspirar-se na ciência e na difusão de seus produtos tecnológicos para todos os produtores, fiscalizando particularmente os marcos impositivos das leis trabalhistas e ambientais.
Sob interpretações tão desencontradas acerca do mundo rural, a eficácia governamental acaba sendo gravemente afetada. Leituras tão distintas, quando transformadas em ação, atiçam o teatro da política, mas limitam o desenvolvimento rural.
Que os futuros candidatos presidenciais e seus programas corrijam esse rumo, que não serve ao Brasil. Folha de S. Paulo –
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Pesquisa indica que 37% dos assentados não produzem nada
Distribuir lotes de terras para famílias pobres pode não ser a melhor forma de ajudá-las a superar a pobreza. É o que indica uma pesquisa feita pelo Ibope, a pedido da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), em assentamentos da reforma agrária no País. De acordo com os resultados, 72,3% das famílias assentadas não conseguem gerar nenhum tipo de renda com a produção de seus lotes. Desse conjunto, 37% não estão produzindo nada; 10,7% não conseguem o suficiente para garantir o próprio abastecimento; e 24,6% produzem somente o necessário para se alimentar. O bloco dos que alimentam a família e vendem excedentes, gerando renda, é de apenas 27,7%. – Por Roldão Arruda do Estadão
O lançamento do Censo Agropecuário 2006 gerou monótona repercussão impressionista e nenhuma análise. Comparados com o censo anterior, algumas facetas foram meramente descritas, como a expansão dos estabelecimentos com eletricidade, o vigoroso crescimento da soja ou a forte redução no pessoal ocupado, entre outras transformações que são de imensa relevância. O principal dado divulgado, porém, reitera a assimétrica distribuição da propriedade da terra, pois os índices de Gini que aferem essa concentração estão entre os mais altos do planeta.
O outro foco repetido, incensado sob espantosa ingenuidade, refere-se à agricultura familiar, agrupamento que seria oposto a um indefinido agronegócio. Resultado de uma sociologia indigente e de um primário marxismo caiopradista, a noção é igualmente um delírio ideológico, pois seria segmentação que, assim se diz, estimularia a luta de classes no campo. Por Zander Navarro
Mas não vivemos em Bizâncio, e mais rigor é preciso.
O censo certamente incentivará estudos reveladores de significativas mudanças no mundo rural brasileiro, sobretudo nas últimas duas décadas. Ressalto como mais relevantes três aspectos, talvez os principais.
O fato mais decisivo se refere à inédita monetarização que hoje determina a vida social rural, deixando para o passado o paroquialismo comunitário, a busca do autoconsumo e o padrão produtivo movido só por aumento da área plantada, marcas antes tão entranhadas na história rural.
O censo é enfático, acentuando que 55% do total dos estabelecimentos responderam por 81% do valor da produção, também sinalizando a crescente especialização e profissionalização dos produtores e a dominação, agora, de um princípio férreo de produtividade. Goste-se ou não, é a consagração definitiva de uma sociabilidade capitalista que passou a comandar o cotidiano rural.
O segundo tema nos remete à agricultura familiar. Esta é uma expressão meramente descritiva, mas não um conceito. Não está associada a nenhuma teoria do desenvolvimento rural nem embute comportamentos sociais virtuosos, como certos grupos parecem acreditar.
Surgiu nos anos 90 exclusivamente para democratizar o acesso ao crédito rural e, dessa forma, enraizar ainda mais aquela sociabilidade. Ante tal objetivo, a oposição citada se torna ainda mais ilusória, pois todos os produtores se integram ao agronegócio (ou seja, aos circuitos mercantis), embora sob formas distintas.
Que grupos de esquerda julguem que um arbitrário corte empírico, ainda que definido em lei, possa separá-los entre "puros e progressistas", de um lado, e "diabólicos capitalistas reacionários", do outro, é parte do bestialógico autenticamente nacional. Surpreende, assim, a decisão de preparar um censo específico para os familiares, um indicativo, novamente, de nossas insuficiências analíticas.
Finalmente, sobre a estrutura agrária brasileira, ainda insistimos na denúncia de fantasmagóricos latifúndios improdutivos, seguindo uma leitura míope que ecoa os anos 50. Não se trata de brigar com números, pois é indesmentível a concentração da propriedade. Mas duas ressalvas são cruciais.
Primeiro, a propriedade rural não é mais a causa fundante das desigualdades sociais e políticas, que hoje são processos sobretudo urbanos. Os produtores rurais, de fato, são atualmente elo subordinado das cadeias produtivas, sendo marginal na economia brasileira a fração dos grandes proprietários fundiários e sua riqueza.
Segundo, ainda que uma mágica propusesse uma radical transformação agrária, não haveria cidadãos interessados em retornar ao campo, pela mesma razão da urbanização.
Ou seja, é surrealista a manutenção de caríssimas estruturas governamentais destinadas ao programa nacional de reforma agrária, inexistindo demanda socialmente significativa. O futuro é inescapável: manteremos no campo uma conformação heterogênea e dual, sem ser dualista, com propriedades em grande escala convivendo com propriedades de menor porte. Houvesse racionalidade, a principal diretriz governamental deveria inspirar-se na ciência e na difusão de seus produtos tecnológicos para todos os produtores, fiscalizando particularmente os marcos impositivos das leis trabalhistas e ambientais.
Sob interpretações tão desencontradas acerca do mundo rural, a eficácia governamental acaba sendo gravemente afetada. Leituras tão distintas, quando transformadas em ação, atiçam o teatro da política, mas limitam o desenvolvimento rural.
Que os futuros candidatos presidenciais e seus programas corrijam esse rumo, que não serve ao Brasil. Folha de S. Paulo –
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