
Immanuel Kant defendia a organização livre dos Estados como fundamento para a paz. Uma estrutura política, para ser sadia, pensava o mestre alemão, deveria se alicerçar no respeito à pessoa humana e ao seu mais prezado direito, a liberdade. Por Ricardo Vélez Rodríguez
Só a constituição do Estado como república garantiria essas duas exigências. Nem o despotismo de um nem o de vários poderiam ser aceitos, pois a vontade pública é, neles, utilizada como se fosse a vontade particular do governante. Nas formas despóticas de organização política, o governo trata o povo como se fosse a sua propriedade.
A Constituição republicana, segundo Kant, é aquela que se encontra estabelecida de conformidade com os seguintes três princípios:
Da liberdade dos membros de uma sociedade enquanto indivíduos;
da dependência de todos em relação a uma única legislação comum, enquanto súditos;
e de conformidade com a lei da igualdade de todos os súditos, enquanto cidadãos.
Essa forma de governo é a única que decorre da ideia do contrato imaginário e sobre a qual se devem fundar as normas jurídicas de um povo.
A Constituição republicana, ainda segundo o mestre alemão, além de ter nascido na pura fonte do conceito do direito, tem a vista posta na paz perpétua. Se o consentimento dos cidadãos é necessário para decidir se deve haver guerra ou não, nada é mais natural que eles pensem muito antes de começar um jogo tão maligno.
Para Kant, são essenciais à forma republicana de governo a representação e a separação entre os poderes Legislativo e Executivo. Duas formas de governo tornam impossível a república: o despotismo de um (tirania) e o de todos (democracia da vontade geral). Nessas duas formas de governo é a mesma pessoa que legisla e que executa a lei. Quanto mais reduzido for o número de pessoas do poder estatal e quanto maior for a representação das mesmas, tanto mais aberta estará a Constituição à possibilidade do republicanismo.
Ao longo da última década a maior parte dos países latino-americanos enveredou pelo duvidoso caminho dos "populismos constitucionais", que visam a instaurar regimes que se autoperpetuam com a bênção das suas respectivas sociedades, conduzidas ardilosamente pelos mandatários de plantão a fazer reformas plebiscitárias que garantam a hegemonia dos donos do poder, sem que haja a mínima possibilidade de alternância do mesmo e com a destruição das instituições republicanas - como o funcionamento da oposição, a preservação e o aperfeiçoamento do governo representativo e a liberdade de imprensa.
As estruturas políticas surgidas dessas reformas partiram para a ignorância em relação à pessoa humana e ao seu direito mais prezado - a liberdade -, como está ocorrendo na Venezuela, na Bolívia e na Nicarágua.
O centro motor dessa maré montante é o regime venezuelano, que estendeu os seus tentáculos sobre os quatro cantos da América Latina, financiando com os abundantes petrodólares o maluco modelo da "revolução bolivariana", que tem servido de inspiração para as mudanças que se apresentam aqui e acolá.
A Venezuela de Hugo Chávez transformou-se em foco irradiador da instabilidade regional, em decorrência da louca corrida armamentista desatada pelo truculento coronel. Ele é, atualmente, sem dúvida nenhuma, quem pauta a agenda política do nosso continente.
O Brasil terminou refém desse modelo, notadamente no que tange à escolha dos rumos da política externa, voltada para um populismo esdrúxulo que acaba sacrificando os interesses do nosso país nas fantasias terceiro-mundistas que levaram Lula a prestigiar o presidente iraniano num momento em que ele é seriamente questionado por ignorar as políticas antinucleares assinadas pelas Nações Unidas.
De Lula, de Chávez e dos demais líderes populistas latino-americanos poder-se-ia dizer o que Kant criticava como despotismo de um só ou de alguns, que utiliza a vontade pública como se fosse a vontade particular do governante e do seu séquito de bajuladores. Os vários chefes populistas latino-americanos se unificam nesta negativa caracterização: tratam o povo como se fosse a sua propriedade.
As Constituições republicanas e as práticas políticas que começam a pipocar na América Latina como fruto das "revoluções bolivarianas" em andamento estão sendo estabelecidas de acordo com três antiprincípios que reforçam a velha tradição patrimonialista de gerir o Estado como propriedade particular do governante e que se contrapõem diametralmente aos princípios republicanos apregoados por Kant.
Chávez e companhia partiram, nas suas reformas constitucionais "bolivarianas", da negação da liberdade dos membros da sociedade enquanto indivíduos; da não dependência de todos em relação a uma única legislação comum, enquanto súditos (pois os governantes de plantão não estão submetidos, nem os seus colaboradores, à lei vigente para todos); e de conformidade com a lei da desigualdade de todos os súditos, enquanto cidadãos (temos cidadãos de primeira, de segunda ou de terceira, dependendo da sua proximidade da esfera dos donos do poder). O Estado de S. Paulo
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