Lula prepara (de novo) o golpe de Estado do terceiro mandato

SE ISSO PROSPERAR, VOLTAMOS À ESCURIDÃO POLÍTICA

Desde que foi criado, há 28 anos, o PT vem sendo chamado pelos intelectuais liberais de a “UDN de macacão”. Esse apelido, inventado pelo professor Cláudio Lembo, tinha por objetivo ironizar o falso-moralismo e a histeria denuncista demonstrados pelos petistas – obviamente até estourar o escândalo do mensalão. Pois agora o PT apresenta uma outra característica daquela velha UDN do brigadeiro Eduardo Gomes: a atração atávica por golpes de Estado.

Pois o presidente Lula voltou a se movimentar pelo terceiro mandato. Ano passado ele ensaiou a idéia duas vezes. Por Carlos Hugo Studart

No primeiro semestre, a Executiva do PT discutiu abertamente o plano de promover um plebiscito para a adoção do parlamentarismo – com Lula, de novo, com a força do povo, evidentemente. No segundo semestre Lula colocou na rua o bloco que pregava o terceiro mandato. Diante da reação dura da oposição, Lula recuou e fechou um acordo com a ministra Dilma Roussef. Lula lança Dilma candidata à sucessão. Em troca, Dilma se comprometeu a só ficar no poder um único mandato, caso seja eleita, abrindo espaço para a volta de Lula em 2014.


A ISCA DE LULA
Nesta semana Lula esteve em Buenos Aires, à frente de 264 empresários. Levou também alguns políticos, entre eles o deputado federal Devanir Ribeiro, do PT paulista, autor da emenda do terceiro mandato. Devanir não ficou entre os colegas políticos, mas se inseriu estrategicamente na comitiva de empresários.

Devanir pertence ao baixo clero da Câmara, mas não é um deputado qualquer. Ele faz parte da bancada pessoal do presidente. É amigo de Lula desde os anos 70, quando os dois foram diretores do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo. No Congresso, se presta ao papel de ventríloco informal do presidente. O que ele diz, é compreendido como recado de Lula que não pode ser enviado pelos canais formais.

Em Buenos Aires, o deputado estava em missão acintosa do Planalto. Puxou assunto com vários empresários sobre o governo Lula. E sobre como seria bom que o presidente pudesse continuar por mais tempo no poder. Lula sondava o capital a procura de peixes graúdos dispostos a morder a isca. Devanir era a isca de Lula. Nem sabia direito quem era quem. Apenas foi colocado ali, como atrativo aos tubarões.

Na segunda-feira 4 de agosto, Devanir se viu cercado de quatro empresários de peso, sendo dois deles diretores da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, a Fiesp. Foram eles que puxaram assunto sobre a emenda do terceiro mandato – segundo relatou Devanir, já de volta a Brasília, em conversa reservada com um petista amigo. Durante essa conversa, os empresários teriam dito a Devanir que a melhor saída para o Brasil, no atual cenário, é continuar com Lula. E pediram a ele que reapresente sua emenda constitucional, que volte a falar abertamente sobre o terceiro mandato, porque há centenas de grandes empresários dispostos a apoiar a idéia – e a convencer seus deputados e senadores a votar na emenda.

Devanir fala a verdade. Pelo menos no essencial. Confirmei com dois empresários que estavam em Buenos Aires que a tese do terceiro mandato foi correu solta entre eles. Há capital graúdo a fim de manter Lula. Entre eles, estariam Paulo Skaf, presidente da Fiesp, Armando Monteiro Neto, presidente da CNI, Sérgio Andrade, da Andrade Gutierrez, Jorge Gerdau, do Grupo Gerdau, Abílio Diniz, do Pão de Açúcar, e Márcio Cypriano, presidente do Bradesco.

Na quarta-feira 6 de agosto, quando Lula seguia para a China e a comitiva política estava de volta a Brasília, a tese do terceiro mandato retornava às conversas de bastidores do Congresso Nacional.


OS TRÊS FATORES DE RISCO
Um fato novo e dois antigos estão levando Lula mudar de planos e a preparar um golpe constitucional:

1) O fato novo é um possível terceiro mandato para o presidente Álvaro Uribe, da Colômbia. Quando Lula ensaiou a mudança constitucional, ano passado, o precedente externo era Hugo Chávez, da Venezuela. Se a tese fosse aprovada por aqui, seria inevitável a comparação de Lula e Chávez pelos analistas de Wall Street, algo péssimo para nossos negócios. Agora é diferente. Uribe é o maior aliado dos Estados Unidos no continente. Está derrotando com armas em punho os narco-terroristas das Farc. Uribe busca o terceiro mandato. Se passar na Colômbia, não haverá mais resistência dos aliados ocidentais para que o terceiro mandato seja adotado também para Lula.

2) Outro fato é que a popularidade de Lula prossegue batendo recordes em cima de recordes por conta dos programas sociais e de uma condução correta da economia. A última novidade, anunciada na terça-feira 5 de agosto, é que a classe média agora representa 51% da população, um fato histórico espetacular, admita-se.;

3) O terceiro fato é que a oposição, capitaneada pelo PSDB, continua cada vez mais perdida. Não consegue apresentar programa de governo alternativo. E muito menos dá sinais de conseguir se unir em torno de um candidato único ao Planalto. Enfim, estamos sem oposição.


DUBIEDADE PRESIDENCIAL
Quando a idéia do terceiro mandato tomou fôlego pela primeira vez, em setembro de 2007, Lula agiu com dubiedade. Em áudio público, o presidente condenou a idéia. “Esse negócio de achar que tem pessoas que são imprescindíveis e insubstituíveis não existe em política”, disse na época. “A alternância de poder é uma coisa extremamente importante para o fortalecimento da democracia.”

Mas nos bastidores, Lula fazia de tudo para tirar de cena todos os possíveis candidatos da base do governo, como Marta Suplicy (leia detalhes logo abaixo) -- enquanto nada faz para conter os defensores do terceiro mandato. Naquela investida, Devanir era apenas um dos defensores da idéia. “Nunca toquei nesse assunto diretamente com Lula”, jura Devanir a todos que perguntam. Ele, no entanto, faz a ressalva. “O Lula nunca me desautorizou. Nem me repreendeu.”

Ora, ora, se Lula efetivamente não pensasse em terceiro mandato, teria intimidade para barrar a iniciativa de Devanir. Eles dividiram uma cela no Dops, quando Lula foi preso com base na extinta Lei de Segurança Nacional. Juntos, fundaram o PT. Quando Lula chegou ao poder, ajudou Devanir a se eleger deputado federal. As duas famílias se freqüentam e Lula e Devanir costumam se encontrar nos finais de semana. “Já perdi a conta de quantas vezes estive no Alvorada”, diz o deputado.

Para o senador Arthur Virgílio, líder do PSDB, o presidente está agindo com dubiedade nesse assunto. “Ele diz que não quer, mas deixa correr solta a articulação pelo terceiro mandato.”


BRUXARIAS NO CALDEIRÃO
Lula de fato está sendo estimulado por um grupo de auxiliares que privam de sua intimidade a desejar (e a trabalhar) o terceiro mandato. De acordo com duas autoridades com acesso às conversas secretas do Planalto, o plano para que Lula permaneça mais tempo no poder é cozinhado em dois caldeirões.

O primeiro é de pura bruxaria política. Sua solução exige mudança da Constituição e vai direto ao ponto – o terceiro mandato consecutivo em 2010. Eis então o projeto de Devanir: apresentar quando o momento político aprouver uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) dando direito ao presidente da República de convocar plebiscitos. Hoje, só o Congresso pode fazê-lo. Se a proposta vingar, Lula estaria livre para consultar o povo sobre seu direito de concorrer de novo.

E essa aprovação, por si só, emparedaria as vozes contrárias no Congresso e no Supremo Tribunal Federal. Além disso, o “sim” ao terceiro mandato funcionaria como uma pré-eleição, minguando as forças da oposição para a disputa oficial em 2010.

Além do amigo Devanir, outros dois deputados estão dispostos a mostrar o rosto no projeto Lula-2010: Carlos Willian, aliado do PTC de Minas, e Cândido Vaccarezza, do PT de São Paulo. A proposta de Carlos Willian, imaginada ainda em 2007, é de zerar todo o jogo eleitoral, criando o direito de Lula e dos atuais governadores de concorrer mais uma vez. William argumenta que é do interesse de todos, inclusive para o Aécio Neves, que quer ser presidente, mas ainda não mostrou seu trabalho.

O caso da emenda de Vaccarezza é um pouco mais contraditório do ponto de vista político. Ela propõe a adoção do parlamentarismo. Sob um novo regime de governo, Lula teria o direito de concorrer a presidente. “Não se pode falar em golpe, pois são propostas dentro do jogo democrático”, justifica Vaccarezza.


OS ÁULICOS DO PLANALTO
Três dos assessores mais próximos do presidente já se engajaram no projeto do terceiro mandato em 2010: o ministro Luis Dulci, da Secretaria-Geral da Presidência, o assessor especial Marco Aurélio Garcia e o chefe-de-gabinete Gilberto Carvalho. Dentro do PT, participam da articulação Ricardo Berzoini, o deputado Antônio Palocci e o ex-ministro Luís Gushiken, que ainda é influente. A corrente de José Dirceu sempre foi contra.

Nenhum deles aceita falar publicamente sobre o assunto, é óbvio. Todos sabem que qualquer uma dessas emendas é uma ruptura sem paralelos da Constituição de 1988 e uma medida de força que atenta contra a normalidade democrática do Brasil.


A ESTRATÉGIA PARLAMENTARISTA
Pertinente recordar que o primeiro plano de prorrogar o mandato de Lula surgiu em abril de 2007, dentro da Executiva do PT. A idéia era adotar o parlamentarismo, reelegendo Lula presidente, quantas vezes fosse possível --e criando a alternância de poder com um primeiro-ministro. O plano logo foi substituído por outro, o do terceiro mandato presidencialista, que agrada muito mais a Lula. De qualquer forma, a estratégia do parlamentarismo não está enterrada, apenas hibernando. E o que significa isso?

Ora, ora, só há uma expressão possível para classificar tal manobra: golpe de Estado. A Constituinte de 1988 estabeleceu um plebiscito, em 1993, para que todos os brasileiros decidissem qual o regime e o sistema de governo queriam para o Brasil. Monarquia ou República? Presidencialismo ou parlamentarismo? Na ocasião, o PSDB de Fernando Henrique se engajou pelo parlamentarismo. O PMDB, como sempre, se dividiu. O PFL de Marco Maciel e o PT de Lula entraram de cabeça na campanha pelo presidencialismo. Deu República presidencialista na cabeça, por quase 80% dos votos.


O DEFENSOR DO POVO
Em 2006, quando se planejava a campanha de Lula à reeleição, o presidente do PT Ricardo Berzoini encomendou uma pesquisa qualitativa sobre a imagem do presidente. Descobriu-se que o eleitor o via como uma espécie de ombudsman, o defensor do povo num governo ruim. Lula seria um homem bom, que tenta fazer o possível para que um governo de homens corruptos e incompetentes ajude os pobres.

Enfim, aquela pesquisa detectou que o eleitorado estaria predisposto a adotar um sistema similar ao parlamentarismo, desde que o chefe de Estado fosse Lula – e o chefe de governo pouco importa, pode ser qualquer um. Hoje o cenário é um pouco diferente. Lula está muito mais popular. E seu governo, ainda por cima, é visto como muito bom.


POR QUE É GOLPE
A adoção do parlamentarismo, em si, até poderia ser bom para o Brasil. A maior parte dos estudiosos do tema avalia que seja o sistema político mais democrático existente, o que mais acelera a redução das desigualdades e o desenvolvimento econômico. Vide o exemplo da Europa. Argumentam até que a principal república presidencialista do mundo, os Estados Unidos, em verdade teria um sistema presidencial-parlamentarista, com um Executivo e Legislativo interdependentes.

Em teoria, também não haveria problema algum um país em construção, como é o caso do Brasil, rever uma decisão já tomada no Plebiscito de 1993 e, eventualmente, dar uma guinada parlamentarista.

Mas o que se discute é o casuísmo da hora. As teses do parlamentarismo e do terceiro mandato não estão sendo levantadas dentro do contexto da reforma política necessária – aí sim, seria uma discussão legítima.


ANÕES CÍNICOS DA HISTÓRIA
Ademais, a tese da prorrogação do mandato está sendo patrocinada por figuras menores do petismo, que gostariam de se eternizar no poder. Dentro do PT, os costureiros são o deputado Devanir Ribeiro, metalúrgico da facção lulista, o deputado Cândido Vacarezza, porta-voz de José Dirceu, Carlos William, do tal PTC, ou dirigentes petistas como Rui Falcão, da sub-facção de Marta Suplicy. Outro que já aderiu a causa é o deputado Virgílio Guimarães, de Minas, que há três anos tentou ser presidente da Câmara e provocou o desastre chamado Severino Cavalcanti.

O argumento deles é de um cinismo comovente. Segundo Devanir e Vacarezza, Lula seria um parlamentarista desde criancinha. No plebiscito de 1993, ele até teria defendido esse sistema nas conversas internas do PT, mas como o PT decidiu-se pelo presidencialismo, Lula, democrata que é, então se engajou de corpo e alma na defesa do presidencialismo. Mas agora, diante da realidade dinâmica dos fatos, Lula poderia se engajar de bom grado em outra tese.


QUE FALTA FAZ UM PETISTA VIÁVEL
A principal razão pela qual Lula e o PT querem mudar as regras do jogo é que o partido não tem uma barbada para apresentar em 2010. José Dirceu fez de tudo para ser o sucessor de Lula –mas foi abatido no caminho. Antônio Palocci também. Tarso Genro não se mostrou com densidade eleitoral, nem Patrus Ananias. Então Lula tirou Dilma da manga da camisa. E agora Fernando Haddad, o jovem ministro da Educação, ensaiar por as mangas de fora.

Mas nenhum deles parece ser capaz de derrotar Ciro Gomes, do PSB, ou os tucanos José Serra e Aécio Neves. Restou Marta Suplicy, candidata de Dirceu –mas não de Lula. Ele vai lutar para que ela seja eleita prefeita de São Paulo. Presidente da República, contudo, jamais!


DILMA, A ALTERNATIVA CONSTITUCIONAL
Desde que foi reeleito, em 2006, Lula emite todos os sinais de que não quer ajudar o PT a construir um candidato petista para sua sucessão. “Tudo indica que o candidato de Lula chama-se Lula”, aposta o cientista político Paulo Kramer, da Universidade de Brasília “Até porque o PT não tem outro”. Foi então que Lula acabou chegando a uma nova idéia chamada Dilma Roussef.

Vale lembrar que por volta de outubro de 2007 a idéia do terceiro mandato tornara-se politicamente inviável. Foi então que Lula encontrou uma alternativa de retornar ao poder, mas com base nas atuais regras do jogo. Por esse plano, Lula voltaria a disputar a sucessão em 2014.

A idéia contemplava a possibilidade de o presidente apoiar Ciro Gomes, num acordo para que ele ficasse apenas quatro anos. Numa reunião no Planalto, chegou-se à conclusão de que seria difícil tal acerto ser respeitado. Ao mesmo tempo, a direção do PT avisou que, nesse caso, o partido teria nome próprio para 2010. Lula então conversou com Dilma, auxiliar que jamais disputou uma eleição. Ela aceitou a empreitada. Ficou então fechado que Dilma seria a candidata de Lula em 2010. E, se eleita, Lula seria o candidato de Dilma em 2014.

Mas agora há fatos novos. Dilma não passa dos 7% nas pesquisas. Lula dá sinais de que caminha para índices de popularidade num patamar próximo a 80%. A oposição está em pandarecos. E por fim vem o fator Álvaro Uribe e seu terceiro mandato apoiado pelos americanos.


A LONGA NOITE HOBBESIANA
O Brasil tem uma história golpes, notadamente os militares, aquele fenômeno que o cientista político Oliveiros Ferreira, da USP, chama de “longa noite hobbesiana” -- uma escuridão que durou século e meio, iniciada em 1821, quando as tropas do Exército no Rio de Janeiro obrigaram o príncipe regente Pedro de Alcântara a substituir o ministro da Guerra, e que se prolongaria até 1985, quando o último general-presidente do regime de 64, João Figueiredo, deixou o Palácio do Planalto pela porta dos fundos.

Foram pelo menos 15 as intervenções políticas dos militares em momentos decisivos da história brasileira. A 16ª tentativa, a derradeira, quando então coronel-ministro César Cals pregou a prorrogação do mandato de Figueiredo para impedir que Tancredo Neves tomasse posse, não colou. Os deputados Devanir e Vacarezza são os César Cals do PT.

Desde a redemocratização em 1985, não tivemos tentativas de golpes de Estado, somente dois casuísmos –os cinco anos de mandato para José Sarney, e a reeleição para Fernando Henrique Cardoso. Parece que Lula também quer deixar sua marca negativa na história.
Parlata

Carlos Hugo Studart
jornalista e historiador, formado pela Universidade de Brasilia. Atuou como repórter, editor ou colunista em veículos como Jornal do Brasil, O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo, Veja, Manchete e IstoÉ-Dinheiro.

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