Seja qual for o resultado das eleições presidenciais, 2010 ficará marcado como o ano do movimento cívico que aprovou a ficha suja na política brasileira.
A opinião pública, distraída como sempre, está eufórica com a Lei da Ficha Limpa — que barra candidatos com maus antecedentes, como o lendário Jader Barbalho. Sem querer estragar a festa, é preciso dar a má notícia: Jader, Roriz e companhia são gotas no oceano diante dos métodos políticos que estão sendo aprovados, ao mesmo tempo, pela mesma opinião pública, na campanha presidencial.
A imprensa fez a sua parte. Mostrou, de forma quase didática, o jeito Dilma de governar. Não se trata de uma denúncia aqui, ou um escândalo ali. Trata-se de uma cultura. O que o Brasil viu — ou deveria ter visto — acontecer na Casa Civil ou na Receita Federal não foi uma coleção de deslizes. Foi um método de ação, um plano de governo. Sucessora de José Dirceu, afastado pelo mensalão, Dilma Rousseff trouxe Erenice Guerra. Investiu tudo nela, e promoveu sua ascensão meteórica de funcionária obscura a ministra mais importante da República.
A eficiência de Erenice é incontestável. Montou uma rede de tráfico de influência no ministério em menos de seis meses. Pode-se imaginar o que faria em quatro anos, como principal ministra de Dilma.
Ao fundo, a espionagem na Receita a serviço do comitê da candidata do PT — mesma Receita que já havia sido fustigada por Dilma, segundo a exsecretária Lina Vieira, para aliviar um processo contra o filho de Sarney. O Estado é deles. Se não fosse, qual seria a graça de pegar o poder?
As agências reguladoras, criadas justamente para despolitizar o Estado — quem foi o louco que inventou isso? —, foram retomadas pela sanha partidária. E devidamente desmoralizadas. O Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), importante referência na análise conjuntural, foi convertido em propagador de ideologia petista. Os Correios, pilar da unificação continental brasileira, mudaram de prioridade: antes da entrega de cartas, a entrega de cargos. Ali também chegou um dos tentáculos de Erenice, a fiel escudeira de Dilma e do PT.
Diante dessa colonização da máquina pública, chega a ser comovente o grito genérico do povo contra as privatizações. O brasileiro teme a alienação do patrimônio estatal. Não toquem nos nossos parasitas.
Lula tem toda a razão quando diz que não se pode reclamar de falta de liberdade de imprensa no seu governo. De fato, a imprensa mostrou a farra toda. E mostrou fartamente quem é, ou melhor, quem não é Dilma Rousseff, além de uma testa de ferro desse projeto de sucção partidária do Estado. Não viu quem não quis. E a massa de votos apontados para a madrinha de Erenice, outdoor do assalto “progressista” à coisa pública, não deixa dúvidas: a ficha suja é um sucesso no Brasil.
A miopia é mesmo um grande tranquilizador de consciência. O eleitor de Dilma ainda se sente à vontade para patrulhar os outros. Afinal, Dilma é Lula, e Lula é o pai dos pobres. No Rio de Janeiro, capital nacional da esquerda festiva, já brota uma certa hostilidade moral contra os que não apoiam a “presidenta”. O politicamente correto continua sendo o melhor disfarce para o intelectualmente estúpido.
Esse Brasil supostamente solidário — ficha suja e cara limpa — ama Lula pelo motivo errado. O governo que se encerra foi positivo em um aspecto crucial: garantiu a estabilidade política, com as instituições funcionando normalmente, artigo raro numa República que marcha aos trancos e barrancos. Isso se deveu em grande medida à ampla representatividade de Lula, e à sua habilidade pessoal. Esta foi a base da manutenção da estabilidade econômica — e do progresso social advindo dela — que o Brasil resolveu acreditar ser obra do governo bonzinho de um presidente pobre.
E onde brota a mistificação, como se sabe, a ignorância e a má-fé se confundem. A comparação de indicadores econômicos do último ano de Fernando Henrique com números atuais não é honesta. Circula na internet um comentário do jornalista Joelmir Beting comparando PIB, juros, inflação etc. de 2002 e 2010, como argumento para a aposta em Dilma. Uma fraude.
O governo anterior tirou a economia brasileira do pântano. Controlou a inflação, apesar da oposição do PT. Mesmo abalroado pelas duas maiores crises financeiras dos últimos 20 anos (dos Tigres Asiáticos e da Rússia), deixou as bases institucionais para o crescimento. Os indicadores de 2002 refletiam essa conjuntura de transição, além do risco Lula — que só desapareceu quando ele comprometeu-se com a política econômica de FH.
Em sua campanha, Dilma apropriouse do feito de Pedro Malan, da foto de Norma Benguell e da assinatura de Ruth Rocha, entre outras licenças poéticas. Mas o que é genuinamente seu, até o momento, é o legado de Erenice. Cada um com a sua ficha.
GUILHERME FIÚZA é escritor.
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