Augusto Nunes
Por Celso Arnaldo Araújo - Veja Online
Um recorte de jornal me assombra desde o dia 26 de dezembro, quando saiu no caderno Poder, da Folha, matéria do competente Fernando Rodrigues com o título “Dilmoteca básica”. Seis dias antes da posse, o jornal pretendia contrapor o perfil da presidente eleita ao do padrinho, sobretudo em termos culturais.
Há textos que você começa a ler e não consegue mais parar. Outros que você não consegue deixar de largar. Este tem o dom de inverter as forças de atração: é ele que não me larga desde a primeira leitura, há mais de um mês. O recorte correspondente me acompanha, como um miasma, obrigando a releituras diárias, a cada dia mais espantosas. Deve ser guardado como prova de um contraste histórico que jamais se repetirá: o presidente que se gaba de nunca ter lido um livro foi sucedido por alguém que se jacta de ter lido todos os livros que nunca leu. Se leu, não assimilou. Se assimilou, nunca demonstrou. Naquele célebre vídeo do guru Marcelo Branco, Dilma levou constrangedores segundos para lembrar o livro que estava lendo, só o fazendo, penosamente, após o sopro amigo da assessora. Por isso, a tal “Dilmoteca básica” é uma coleção extraordinária de embustes transformados em gênero literário.
A tese central da matéria da Folha ─ “De todas as diferenças entre a presidente eleita e seu antecessor, uma das mais marcantes é a sólida formação literária da próxima ocupante do Palácio do Planalto” ─ é desmentida a cada linha do texto. Mas as paixões literárias da presidente são tantas e tamanhas que, a certa altura, ela diz que chegou a pensar em comprar uma casa só para guardar seu “acervo”. José Mindlin era mais modesto: o maior bibliófilo do país morava na própria casa onde mantinha seus 30 mil livros.
Não era intenção de Fernando conversar com a “bibliófila” Dilma Rousseff, mas compor seu perfil biográfico. Primeiro falou a fã de esportes, que de pronto recordou-se de sua “primeira vez” no Maracanã, em 1969. (Teria sido um jogo do Flamengo, mas ela não lembra contra quem. Detalhe que deixa essa história muito estranha: Dilma/Stella estava na clandestinidade – que tipo de guerrilheira com a cabeça a prêmio, ainda por cima mineira, se arriscaria a ir ao Maracanã à toa, naquela época duríssima? O pessoal do MR-8 esteve na porta do estádio no dia 7 de setembro daquele mesmo ano, mas para desovar o embaixador Charles Elbrick (jogavam Fluminense e Cruzeiro). Dilma se expôs para ver a festa da torcida do Flamengo: “Eu fiquei assim abestalhada com as bandeiras. É de perder o fôlego”. De perder o fôlego é o amor de Dilma pelos livros, desde cedo.
A transição de assuntos ─ domingo no Maracanã para hábitos de leitura ─ foi meio brusca. Ela desanda a falar: “Sobre a memória, quem tem razão era o Proust. Ele falava do sabor e do odor, dois sentidos primitivos que suportam um edifício imenso da recordação”. Esse Proust da Dilma, que “falava” do sabor e do odor, parece um enófilo, não o célebre escritor homônimo. Mas para provar que leu o monumental “Em busca do tempo perdido”, ela faz referência às… às madeleines, única coisa que quem nunca leu Proust sabe sobre Proust.
Depois de revelar que, “em matéria de poesia”, gosta de João Cabral, Cecilia Meirelles e Fernando Pessoa (de quem Dilma, numa entrevista célebre antes da eleição, surrupiou o célebre “navegar é preciso”, atribuindo-o a Ulysses Guimarães), entra mais um olhinho puxado na história: “Eu consigo além disso gostar do Bashô, sabe quem é Bashô?”, pergunta ela ao colunista, para em seguida responder e mostrar autoridade: “Um monge japonês que inventou o haicai”. Bem, Bashô não era monge e quem diz que ele “inventou” o haicai não é propriamente um leitor de haicais, escola poética que exige precisão formal absoluta.
Para demonstrar que não tem “um” gosto, Dilma vai então do Japão medieval de Bashô à Nova Inglaterra. “Gosto apaixonadamente de uma mulher chamada Emily Dickinson, a senhora de Amherst”. De novo, a leitora de fachada ou de orelha se trai com epítetos esquisitos – “senhora de Amherst”? Quem se refere assim a “uma mulher chamada” Emily Dickinson é para mostrar que sabe em que lugar dos Estados Unidos a autora nasceu, apenas isso. Gostaria de ouvir Dilma discorrendo sobre a obra de Emily. Bastaria um livro.
Espere: a coisa está ficando melhor. Ela retorna a Proust, o das madeleines. “Gostei do Proust para mais de metro”, diz a bibliófila métrica. Mas, eclética, vai logo de Paris a Ilhéus, das madeleines ao cacau: “Também adorei, aos 13 anos, quando meu pai me deu o Jorge Amado”. Como assim, “o Jorge Amado”? Ela explica: “Foi Capitães da Areia, São Jorge dos Ilhéus, todos os outros”. Ou seja: a obra toda do autor. Imagine o cenário: Belo Horizonte, 1960 ─ Dilma tinha 13 anos, ainda usava laçarotes na cabeça e Jorge Amado já tinha escrito 11 títulos. Petar Roussev chega em casa equilibrando-se atrás de um pacote de livros. Dilma adorou “o Jorge Amado”.
Era uma menina de paixões literárias arrebatadoras, ecléticas. “Amei de paixão o Machado de Assis (“o” Machado significando, claro, toda a obra dele), mas também o Monteiro Lobato.” Para não deixar dúvida sobre o Lobato a que se referia, explicou: “A Emília, o Pedrinho, a Narizinho, o Visconde, a Cuca”, a turma toda.
Pois bem: a menina que se entregava a obras completas de autores seminais deu lugar à moça idealista que pegou em armas e esteve na clandestinidade ou presa por muitos anos ─ e a biblioteca do DOPS não era exatamente a do Congresso americano. Depois, à “economista” que logo entraria para o serviço público e não largou mais o osso, sempre absorta em relatórios enormes sobre kilowatts/hora e, mais recentemente, o Minha Casa, Minha Vida. A leitura “literária” naturalmente ficou em segundo plano, não? Errado. “Eu compro muito livro, sempre mais do que consigo ler. Tenho aquela teoria de que estou fazendo um estoque (…) Vai que aconteça alguma coisa e eu não tenha condição de ficar comprando livro? Então, eu estoco”.
O melhor do estoque foi guardado para o final. O texto relata que Dilma, em viagem à China com Lula, fez uma demanda sui generis: “Enchi a paciência do embaixador para me dizer qual era o romance chinês equivalente aos romances nossos. Qual é o Charles Dickens deles. Qual era o Balzac, o Flaubert, o Shakespeare”.
Não sei se o senhor embaixador chegou a apontar o “Shakespeare chinês”, mas deve ter indicado alguma coisa: Dilma contou a Rodrigues que trouxe para o Brasil um catatau local traduzido para o inglês. Três volumes. “Mas o diabo não era isso. Eram os nomes dos personagens”. Dilma estranhou aqueles nomes esquisitos: “Temos uma baixíssima familiaridade com nomes chineses”, surpreende-se ela, sem levar em conta que os chineses também não têm muita familiaridade com nomes como Rousseff, Carvalho ou Eustáquio. Mas Dilma, que leu o Balzac chinês de cabo a rabo, não se apertou, porque tinha uma estratégia: “Você anota todos os nomes num papel para não se perder totalmente”.
Esse pedaço de papel — com os nomes chineses caprichosamente anotados pela presidente Dilma — sem dúvida valeria mais no mercado de obras raras do que os originais dos Pergaminhos do Mar Morto ou dos Protocolos dos Sábios de Sião.
Um comentário:
Essa "coisa" beira ao ridículo! Uma boçal preguiçosa se fazendo de intelectual... só na banânia, mesmo!
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