Pronto, descobriram tudo. Não adiantou disfarçar. Já há até artigos de jornal comentando que alguns brasileiros reacionários tentaram derrubar o governo a golpes de gramática. Puxa vida, estava tudo tão articuladinho! Íamos detonar o ministro da Educação com uma mesóclise, o Palocci com um numeral multiplicativo (mas esse já foi), e a presidente, jóia da coroa do nosso golpismo, seria removida por uma corrente. De orações. De orações coordenadas assindéticas, claro. Toda nossa trama tinha como argumento e cenário as críticas que fazíamos ao livro didático “Por uma vida melhor”, patrocinado pelo MEC para o EJA. Esse o disfarce, mas o objetivo, mesmo, era derrubar o governo.
Até parece que estou ironizando, mas não estou. Apenas amplio um pouco as acusações formuladas por intelectuais alinhados com o governo – intelectuais orgânicos, para dizer como Gramsci – aos que reprovaram aquele livro didático. Nossas motivações seriam apenas políticas. Nenhuma boa intenção, nenhuma apreciação razoável sobre a função do idioma para o desenvolvimento individual e social nos poderia ser creditada. As críticas que fazíamos verteriam de uma oposição "conservadora", cujas sórdidas motivações não se detinham sequer ante algo tão hermético e acadêmico quanto o ensino de língua portuguesa – propriedade deles e ante cujas cercas eletrificadas seríamos meros aventureiros e intrusos.
Certo, certíssimo, acima de qualquer dúvida ou contestação, estaria o sábio Haddad, sob cujo comando, convenhamos, o MEC se especializou em jogar dinheiro fora e em promover trapalhadas. Mesmo assim, ouriçaram-se os governistas. Era preciso socorrer o ministro. Esgotaram o estoque de sofismas. Como de hábito, levaram palavras ao pelourinho para delas extrair sentidos que, por outros meios, se recusariam a admitir. Entende-se. Não é com pouco esforço que se consegue transformar o certo em errado, o errado em certo, e atribuir satânicas motivações aos que discordam. Você sabe como é. Quando a esquerda governa, toda crítica é recebida como uma punhalada. E mesmo essa oposiçãozinha aí, com diagnóstico de morte cerebral, é vista como uma falange de hunos que atacam por todos os flancos e modos, dignos ou indignos. Até parece que a esquerda, quando fora do governo, se caracteriza pela moderação e pela fidalguia, não é mesmo?
Foi instrutivo lê-los. Fiquei sabendo, por exemplo, que essa história de idioma bem falado e bem escrito, no ambiente escolar, é coisa de pessoas pernósticas, viúvas do Rui Barbosa, tão enlutadas quanto a mulher dele, dona Maria Augusta Viana Bandeira. Fiquei sabendo que o direito de falar e escrever com correção por bons motivos é privilégio da esquerda. Cá do meu lado pernóstico da cerca fiquei pensando se os intelectuais de esquerda teriam alguma credibilidade se não manejassem razoavelmente bem o idioma. Mas consideram que o ensino correto no ambiente escolar afronta as crianças provindas de famílias incultas! Não é engraçado? Eles, socialistas, querem socializar a ignorância. Os conservadores, os não esquerdistas, malvados que são, querem uma educação pública de qualidade para todos.
Durante muito tempo acreditei que certas correntes políticas buscassem, mediante meios distintos, os mesmos fins bons. Custei a perceber que os meios são distintos porque os fins são essencialmente diferentes. Foram os fatos da vida, bem mais do que as palavras, que me ensinaram isso.
Duvido. Duvido e faço pouco, como se dizia antigamente, de que esses mestres e pedagogos sigam, para educar os próprios filhos, as diretrizes que aplicam aos filhos dos outros.Publicado em ZERO HORA, 19/06/2011
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