A perversidade dos que expõem uma garota ingênua a comparações com Liz Taylor


Por Augusto Nunes - Veja Online
Interpretar qualquer personagem de William Shakespeare não é coisa para atores comuns, muito menos para principiantes: todas as criaturas do genial dramaturgo inglês são complexas demais para que artistas apenas esforçados possam desvendá-las. Interpretar uma figura como Katharina, protagonista da comédia The Taming of the Shrew (“A Megera Domada”, na tradução brasileira), é coisa para gente grande. Só atrizes do primeiro time aceitam o papel, sobretudo depois da versão cinematográfica dirigida por Franco Zefirelli e estrelada por Elizabeth Taylor (veja o vídeo abaixo). Já é difícil ser Katharina. Ser a Katharina que Liz Taylor foi é impossível.

Caso a peça fosse encenada pelo grupo de teatro do colégio, a idade e a complacência que merecem amadores que sonham com a carreira teatral autorizariam Bia Lula a ser a Katharina de Shakespeare, Catarina da Rússia ou Katherine Hepburn. Os R$ 300 mil bancados pelos contribuintes e repassados pela Oi a título de patrocínio mudam tudo. Verbas desse porte são reservadas a nomes consagrados, e com eles a neta de Lula será confrontada. O avô decerto dirá que comparar Bia a Liz é coisa de gente perversa. Perversa é a família que permite a uma jovem de 16 anos ser comparada a Elizabeth Taylor.

Desses perigos minha gente me livrou. Eleito quatro vezes, Adail Nunes da Silva foi prefeito de Taquaritinga durante 16 anos ─ e prefeito, numa cidade com 30 mil habitantes, é mais que presidente. (No fim dos anos 50, uma tia professora perguntou, numa prova de conhecimentos gerais, quais eram os três Poderes da República . “Adail”, “Nunes” e “Silva”, escreveu um aluno). Mas aprendi muito cedo que quem é prefeito também deixa de sê-lo, que a passagem pelo planalto precede a volta à planície, que a ascensão é irmã da queda.

“Não aceite convites para fazer o que você não sabe”, vivia dizendo meu pai. “O convite é para ele, não faça o papel de bobo”, explicitava minha mãe. Antes de cair na tentação de começar na fanfarra do colégio pela vanguarda dos tambores, entendi que a melhor porta de entrada era a dos fundos, que dava para a ala dos flautistas. Passei alguns anos nos bancos do corredor dos ônibus que transportavam o time de futebol. Os filhos e netos de Lula já chegam reivindicando a janelinha.

Se vislumbrava algum indício de arrogância, nenhum amigo perdia a chance de soltar a pancada pedagógica: “Não banque o filho de prefeito”. Meus dois irmãos completavam a lição: “Aqui pai não pode nada”, advertiam os outros filhos do prefeito. Bia Lula nasceu e cresceu acreditando que o presidente perpétuo pode tudo. Quando uma vaia atirá-la do 20° andar, o SuperLula não chegará voando a tempo de interceptar a trajetória e devolvê-la, incólume, à cama de princesa.

É provável que a adolescente devolvida ao mundo real deseje a morte da plateia cruel. Mas a culpa terá sido do avô deslumbrado com o trono imaginário e com o vidaço de novo rico.

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