Vejam esta foto
Por que ela está aí? Já explico. Antes,
algumas considerações.
Lula fez ontem uma espécie de ameaça
velada em Paris: “Ou vocês me deixam quieto ou corro pra galera; ou vocês param
de encher o meu saco, ou vou buscar a imunidade nas urnas…”. Mas se candidatar
a quê? Trato disso em outro post.
Notem: até agora, não aconteceu com Lula
nada que esteja fora das mais estritas regras legais. Até agora, a imprensa
“golpista” não fez com ele nada que não tenha feito com outros políticos. Na
verdade, talvez nem seja bem assim: quando se trata de Lula, o tom é sempre
mais cuidadoso.
Então de onde vem essa gritaria toda,
anunciando uma suposta conspiração contra o ex-presidente? Parte considerável
deriva do subjornalismo financiado pelo governo federal e por estatais — mais
violento e dado a baixarias na gestão Dilma do que na própria gestão Lula, por
incrível que pareça. Mas há também ecos na imprensa que os petistas
chamam “golpista”. Lá estão alguns colunistas a apontar o suposto preconceito
contra Lula, os maus bofes da direita, as maldades dos reacionários…
É uma gente que seria pitoresca não fosse
a má consciência. Direita? Reacionários? Elites preconceituosas? Pois é… Eu me
lembrei de um texto que escrevi no dia 23 de outubro de 2009. E estou aqui
lamentando não tê-lo incluído em “O País dos Petralhas II”. O título original é
“O diabo e o bom Deus” (já fiz referência a essa expressão hoje). Analiso uma
frase de Lula que fará história. Segundo ele afirmou então, se Jesus fosse político
no Brasil, faria acordo com Judas. Naqueles dias, o então presidente já fazia
campanha eleitoral aberta em favor de Dilma, mandando a lei às favas. Vale a
pena reler. Especialmente quando, depois de 22 anos, José Sarney vai
experimentar um fim de semana prolongado à frente da Presidência da República.
Ao texto.
*
A declaração estúpida de Lula, segundo a qual, no Brasil, é preciso fazer aliança até com Judas para governar, merece reflexões novas. É preciso ir além da firula, da aparência, da desconstrução da metáfora chula e, obviamente, desinformada para captar o sentido político da fala. Cumpre perguntar: com quem, então, ele jamais se aliaria? Antes de responder, alguma digressão.
*
A declaração estúpida de Lula, segundo a qual, no Brasil, é preciso fazer aliança até com Judas para governar, merece reflexões novas. É preciso ir além da firula, da aparência, da desconstrução da metáfora chula e, obviamente, desinformada para captar o sentido político da fala. Cumpre perguntar: com quem, então, ele jamais se aliaria? Antes de responder, alguma digressão.
Judas era um dos seguidores de Jesus. Ele
se tornou um símbolo da traição, o que lhe custou muito caro. Acabou se
enforcando, dada a enormidade do seu ato, perseguido por sua consciência. No
Brasil, os Judas não se arrependem. E ainda mandam enforcar. Lula, como afirmei
no primeiro texto sobre o caso, nunca foi traído por ninguém. A depender da
abordagem que se faça, ele fica melhor é no papel de traidor. A foto de Alan
Marques na primeira página da Folha (em si, muito boa), com o
presidente de mãos postas, olhos fechados, como quem ora, buscou um diálogo com
a manchete: “No Brasil, Cristo teria de se aliar a Judas, diz Lula”.
A intenção da edição era fazer um pacote
religioso. Por que alguém que defende a aliança com um símbolo da traição
merece ser retratado como quem está sendo tocado pelo Espírito Santo é um
desses mistérios que ou é explicado pela ignorância religiosa ou por um
refinado senso de humor. Minha aposta? Bem… Se é para passar a impressão de que
Lula está orando, dada a aliança confessa com Judas, então ele deve ser o
sacerdote de alguma Missa Negra. O conjunto — Lula, sua fala e a foto que a
ilustra — dá notícias de um tempo bárbaro. Agora vamos voltar ao ponto lá do
primeiro parágrafo para exorcizar o demônio da má política já que não há o que
exorcize o demônio da má consciência.
E com o capeta, Lula faria acordo? É bem
provável que sim. O bicho pode ter chifres, rabo, pés virados para trás,
recender a enxofre, bigode, peito estufado, olhos trincados de tão arregalados…
Não importa! Só não pode ter pena colorida, bico grande e, bem, chamar-se FHC.
O que estou querendo dizer, queridos leitores, é que uma declaração em si mesma
infeliz; de notável ignorância específica — e não há especificidade que este
generalista não despreze com a nonchalance típica dos
ignorantes convictos —; grosseira até, revela a disputa pela hegemonia do
processo político, sim, mas também uma concepção autoritária de poder.
Peço-lhes um esforço brutal, sei disso,
mas é só por alguns segundos: imaginem-se no lugar de Lula, comandante máximo
do PT. Esqueçam só um pouco de que o olhamos de fora para dentro, de que
enxergamos sua trajetória como críticos e como analistas. Neste breve instante
em que estamos vendo o partido com os olhos de seu criador, certamente
divisamos nele virtudes únicas, redentoras, salvadoras. Pois bem: quais seriam
as qualidades que fazem de José Sarney, Renan Calheiros, Fernando Collor e
Jader Barbalho companheiros de trajetória, mas de FHC um inimigo cuja história,
se possível, deva ser eliminada da memória brasileira ou permanecer como
anátema? Lembrem-se: ainda estamos na, vá lá, mente de Lula: a que solução
moral ele chegou para vituperar de modo obsessivo contra o antecessor, mas a se
abraçar com aquelas outras personalidades?
Eis a questão que interessa. Não é só
Judas, não! Judas, vá lá, não deixava de fazer parte dos planos do Altíssimo. À
sua maneira, era alguém que tinha uma função naquela narrativa. E acaba se
dando muito mal. É uma personagem trágica, triste! Lula poderia se aliar também
ao capeta porque o que está em disputa é a hegemonia do processo político. Há
forças políticas no país que, por enquanto ao menos, ele não pode subordinar —
e tampouco elas se submeteriam voluntariamente à sua liderança. Então vale
literalmente tudo. Judas é só o elemento menos deletério do ajuntamento. Todos
os outros têm um preço que pode ser perfeitamente pago. E como Lula paga! Paga
com ministérios! Paga com estatais! Paga com cargos de segundo escalão! Paga
com juros! Paga até com o real supervalorizado! Ele só não aceita pagar o preço
da alternância do poder. Porque, de fato, este é um dos preços que cobra a
democracia.
Huuummm… As coisas começam a ficar mais
claras. Aquela defesa desavergonhada que Lula fez das alianças — até com Judas!
— não é um testemunho de realismo político, não! É a expressão de uma concepção
autoritária de poder. E é isso que muitos se negam a entender. É evidente que
ele não acredita que o país estaria em piores mãos se dividisse o poder com,
sei lá, o PSDB; é claro que ele sabe qual foi o papel de FHC na história do
país e qual foi o de Sarney — “o homem especial”. Ocorre que Sarney não
ambiciona uma troca de guarda, de comando, e o PSDB, sim.
É por isso que o homem que não tem pejo de
fazer coligação com Judas — e o capeta pode vir também — só não aceita que as
oposições voltem ao poder. Porque aceitá-lo, coisa corriqueira em países
civilizados, implica acatar o princípio da democracia. Não! Não estou cobrando
que Lula se quede passivamente diante de uma eventual derrota eleitoral . Estou
cobrando que ele, ao menos, respeite a lei, o que obviamente não faz. Mais do
que isso: anuncia que continuará a desrespeitá-la.
Aquele que aceita Judas como um dado da
realidade política não vai se subordinar, evidentemente, a um código legal. Há naquela
metáfora destrambelhada, como se vê, muito mais do que ignorância episódica: há
a truculência metódica disfarçada de realismo político.
E encerro com a foto, aquela, em que
parece que ele está fazendo download do divino. Talvez
estivesse mesmo recebendo uma mensagem do além. A ser assim, não vinha das
Luzes.
Por Reinaldo Azevedo
Nenhum comentário:
Postar um comentário