O Estado de São Paulo
Tive a oportunidade de ler, uns 20 anos
atrás, uma história que, por seu significado, muito me impressionou. Um
dentista francês que fora tentar a sorte na América teve como um de seus
primeiros clientes um cidadão que se trajava de modo austero e parecia homem de
poucas palavras. O tratamento ia ser caro e demorado. Quando o odontólogo
apresentou uma prévia do orçamento, o cliente abriu um sorriso amigável,
passou-lhe um cartão de visita e foi logo dizendo: "Sou membro da Igreja
Presbiteriana da Main Street e o senhor, se quiser, poderá tomar informações a
meu respeito por lá".
Nada mais disse, o que deixou o francês
intrigado. Ao reportar o ocorrido a um colega mais afeto aos costumes locais,
foi tranquilizado: o que o cidadão quis dizer foi: não se preocupe quanto ao
pagamento. Tudo foi quitado religiosamente em dia e com isso o gaulês teve sua
primeira aula de América. Ele pôde perceber que os americanos honravam, como se
sagrada fosse, a palavra que empenhavam.
No início do século passado, em 1904, o
sociólogo alemão Max Weber esteve na América. Seu objetivo era claro: desejava
conferir pessoalmente algumas características do povo local que já desconfiava
que existissem e de suas pesquisas tirou conclusões inéditas e surpreendentes,
que não só elevaram sua obra A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo à
condição da mais importante do século 20, como também transformou de vez toda a
estrutura da sociologia até então existente - antes lastreada unicamente no
marxismo e no conceito materialista de "luta de classes".
Para Weber, a visão de Marx, apesar de
seu potencial mobilizador - tanto que perdura até hoje -, nunca deixou de ser
um whishful thinking, uma forma marota de atribuir ao próximo a
responsabilidade por todas as nossas mazelas. Se a culpa é sempre dos outros,
podemos todos nos eximir dos problemas. Nem sequer nos cabe fazer uma
autocrítica sincera acerca de nossas eventuais deficiências.
Weber, que posteriormente escreveria um
tratado sobre todas as principais religiões, chegou a conclusões opostas. Ao
contrário de Marx, entendia que as raízes das nossas misérias, longe de ser
materialistas, tinham todas elas um severo componente espiritual. Dependiam da
nossa idealização de Deus.
Ao estudar o protestantismo, Weber notou
que havia em quase todas as suas denominações um lugar-comum: Deus não perdoava
as almas em função de sua vida aqui, na Terra; todos nós já teríamos um destino
predeterminado antes mesmo de nascer e não teríamos nenhuma pista a respeito
dele. O único indício sobre esse destino seria o grau de sucesso e prosperidade
que viríamos a alcançar em nossos empreendimentos. Os ensinamentos de Weber
extraídos do protestantismo inspiravam-se em suas vertentes mais radicais, representadas
pelas palavras de João Calvino e alastradas pela América. Não por coincidência,
foram os seguidores europeus e norte-americanos do teólogo franco-suíço os que
lograram alcançar maior êxito na vida.
Segundo Weber, as virtudes associadas à
honestidade, solidariedade, cumprimento fiel da palavra dada, somadas a
trabalho duro e a padrões austeros de acumulação de riquezas, explicavam esse
fenômeno: se todos agissem conforme tais normas, adquiririam já de início uma
vantagem comparativa insuperável em relação aos demais.
A ética protestante, ademais,
associava-se ao racionalismo na ciência, à jurisprudência, à observação somada
à sistematização racional da administração pública. Era, por assim dizer, um
desenvolvimento do Iluminismo. Essa ética ajudava, e muito, esse processo.
Paradoxalmente, foi a intransigência
quanto aos usos e costumes o que mais contribuiu para seu êxito: aos cidadãos
não era tolerado nenhum deslize. Qualquer escorregão ético era visto como um
sinal evidente de que quem o cometera não estava entre os agraciados com a
bênção divina. E isso não só torturava intimamente o pecador, como acarretava
consequências sociais terríveis. As mais suaves implicavam o banimento do
convívio em sociedade.
A quem deseje entender melhor esse fenômeno
ouso recomendar um filme de décadas atrás chamado A Letra Escarlate. A trama é
ambientada em Massachusetts, no século 17. Uma mulher jovem acredita ter
perdido o marido (não me recordo das circunstâncias) e se apaixona por outro
homem. Acontece que o marido não havia falecido. Tempos depois ele reaparece e
a partir daí a vida dela se torna um inferno: as autoridades, para marcá-la
como adúltera, ordenam que seja pregada em suas vestes uma enorme letra A de
cor escarlate. A sociedade local, como era de prever, passou ostensivamente a
evitá-la. E por muitas outras privações ela teve de passar antes que a morte
viesse buscá-la.
Diante de toda essa severidade, o
catolicismo ficava em desvantagem. Entre nós, católicos, existe o perdão. Isso
torna a nossa religião mais humana, porque admite a redenção dos pecados, desde
que o fiel demonstre sincero arrependimento. Somos mais tolerantes,
mas pagamos um preço por isso.
Pelo sim, pelo não, o fato incontestável
é que em quase todas as sociedades europeias são os protestantes que têm os
melhores cargos, recebem os salários mais elevados e ocupam postos de liderança
na comunidade. Isso não passou despercebido nem por Weber nem pelos pensadores
que vieram depois.
Esse fenômeno significa que o
protestantismo é, de alguma forma, superior ao catolicismo? Não há evidências
sólidas para comprovar a tese. O que se pode afirmar com certeza é que o Deus
dos protestantes é mais severo e intransigente que o Deus católico. O Deus
protestante é intolerante e intransigente com seus fiéis. Já o Deus dos
católicos se destaca por ser misericordioso, perdoar as nossas faltas, ser
compreensivo com os pecadores. O Deus protestante conduz seus fiéis a um mundo
sem pecado e com mais prosperidade. Mas, sem dúvida, é mais fácil amar o nosso
Deus do que amar o Deus dos protestantes
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