Roraima, arroz e banho de sangue

PF PRONTA PARA DESOCUPAR RESERVA INDÍGENA
Exército só deverá intervir no último caso

Responsável pela formação do pensamento militar sobre as questões relacionadas à Amazônia, o Centro Brasileiro de Estudos Estratégicos (Cebres), integrado por militares da reserva, é contra a retirada de não índios da Reserva Raposa/Serra do Sol, em Rondônia. E alerta para a probabilidade de um conflito sangrento de conseqüências imprevisíveis na região, caso o governo mantenha a decisão de executar a Operação Upatakon III, já anunciada pela Polícia Federal para esta semana.

– O risco de um confronto é concreto – afirmou o coronel Amerino Raposo Filho, vice-presidente do Cebres.

Ele frisa que o impasse parece insuperável e resulta de duas posições aparentemente sem recuo: a decisão de governo e a resistência dos arrozeiros – apoiados por parte dos índios e da população contrária a reserva em área contínua. O militar diz que, se houver mortes e o confronto escapar ao controle das forças de segurança do governo, o Exército deve intervir como força de paz e interromper a operação, mesmo sem ordens superiores.
Missão constitucional

– Se houver derramamento de sangue, o Exército deve entrar no conflito. É uma faixa de fronteira e essa é sua missão constitucional. Se ocorrer a quebra do equilíbrio social na área, a ordem independe do governo. Se trataria de uma questão de Estado de responsabilidade das Forças Armadas – diz o coronel.

A assessoria de comunicação do Exército, em Brasília, informou que a operação é uma atribuição do Ministério da Justiça e, por essa razão, as Forças Armadas deixaram de participar dos preparativos e se recusaram a emprestar o apoio logístico. Nos bastidores, militares que acompanham o conflito no Rio e em Brasília, dizem que o comandante do Exército, Enzo Peri, teria informado pessoalmente ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva que a retirada de não índios da área desagrada à área militar. Ao contrário de outros momentos – em que normalmente exerce papel ativo de apoio à outras instituições ou prestando serviços sociais –, o Exército assumiu agora uma postura de neutralidade relativa.

– É necessário observar com cautela. Se o Exército não quer participar é porque o problema é muito grave – diz o economista Marcos Coimbra, conselheiro do Cebres, professor e estudioso do assunto.

ENTRAR E OCUPAR
Segundo ele, é provável que o setor de inteligência da força avalie a hipótese de conflito e a possibilidade de a Polícia Federal e a Força Nacional de Segurança não conseguirem controlá-lo.

– Nesse caso, o Exército se preserva para poder entrar, ocupar o território desarmar as partes envolvidas no conflito e ficar na área, afastando quem não for da região –, afirma Coimbra.

Na avaliação do Cebres, o que acontecer na próxima semana em Roraima será o emblema de um conflito mais amplo, onde estarão em jogo dois pensamentos sobre o controle da região amazônica e suas riquezas. Esses militares acham que a demarcação em área contínua quebra a linha de controle que as Forças Armadas exercem na região por abrir um vazio demográfico de mais de 10 milhões de hectares – unindo a Raposa/Serra do Sol à Reserva Ianomâmi numa extensão de 100 mil quilômetros quadrados – e abre caminho para a decretação de uma nação indígena independente, com interferência de Organizações Não Governamentais (ONGs) estrangeiras de orientação americana.

– De um lado estarão os nacionalistas que defendem a soberania e a integridade do território e, do outro, as elites porcas, que se corrompem em troca de dólares – ataca o coronel Raposo Filho.

Outro militar do Cebres, o coronel Gélio Fregapani, ex-diretor da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) na região e autor de vários estudos sobre o conflito, lembra que o Brasil é o único signatário de resolução recente da ONU prevendo a formação de uma nação indígena independente na região, o que abriria caminho para a perda de um significativo pedaço da Amazônia brasileira e de suas riquezas minerais.

– As gerações de amanhã vão perder 56% do território nacional, o coração da terra no século 21 – alerta Raposo Filho.

Uma vez consumada a operação, o governo de Roraima terá controle sobre pouco mais de metade de seu território. As reservas indígenas na região alcançarão cerca de 10,6 milhões de hectares ou o equivalente a 46% de sua área geográfica. No subsolo da área indígena, conforme estudos geológicos, estará localizada uma das maiores e mais valiosas reservas minerais do mundo em ouro, pedras preciosas e minério estratégico.

A Fundação Nacional do Índio (Funai) já gastou cerca de R$ 12 milhões em indenizações para retirar da área os moradores que concordaram em sair e diz que tem um plano para gerir a economia indígena, recuperar o meio ambiente e desenvolver as comunidades que ficarão na área.
JB Online



EXÉRCITO SE OPÕE A AÇÃO EM RORAIMA
Militares não participam da retirada de não-índios, apesar de mais bem treinados e de conhecerem melhor a região.A operação de retirada dos fazendeiros que resistem na terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, está deixando exposto o mal-estar entre setores das Forças Armadas e governo federal em torno daquela questão. O sinal mais evidente disso é a ausência do Exército na operação.

Até agora a Polícia Federal enfrenta sozinha os fazendeiros, que deixaram clara sua intenção de resistir com o emprego de táticas de guerrilha. Na primeira semana da operação eles se empenharam em impedir o avanço da PF no território que reivindicam: queimaram e bloquearam pontes e tentaram impedir o tráfego na principal rodovia da região.

A participação do Exército - que tem pelotões de fronteira espalhados pela região - poderia facilitar e encurtar a chamada Operação Upatakon 3. Além da vantagem numérica e do conhecimento da região, o Exército conta com homens treinados no combate a guerrilhas. Os agentes da PF, arregimentados em outros Estados, nem sequer conhecem a região.

Indagada sobre a ausência do Exército na operação, a assessoria do Ministério da Justiça - ao qual se subordinam a PF e a Fundação Nacional do Índio (Funai) - respondeu que seria mais adequado perguntar ao Exército. Por sua vez, a assessoria do Exército respondeu que entre as missões constitucionais da instituição, “a defesa da Pátria é a principal”; que tropas podem participar de operações internas, desde que seja observado o regulamento jurídico sobre o assunto: e, por fim, que a “a operação está na esfera do Ministério da Justiça”.

Por questões disciplinares, militares da ativa não comentam o caso. Mas em clubes e associações de oficiais da reserva, assim como em seus blogs na internet, o assunto ferve. Em entrevista ao Estado, o general da reserva Durval de Andrade Néry, da direção do Centro Brasileiro de Estudos Estratégicos (Cebres), que congrega no Rio os Clubes Naval, Militar e da Aeronáutica, disse enfaticamente que o Exército não participa porque não concorda com a retirada dos “brasileiros não-indígenas” da reserva.

Apesar de convidados, os militares não participaram das reuniões de preparativos da operação. Mas sabiam que seria iniciada dia 28. E por isso o Cebres realizou, na sede do Clube da Aeronáutica, nos dias 26, 27 e 28, o seminário Amazônia, Cobiçada e Ameaçada - com um time de palestrantes contrários à demarcação. “Fizemos isso exatamente para mostrar que o Exército não apóia essa operação”, assegurou Néry.

O arrozeiro Paulo César Quartiero, organizador da resistência à desintrusão, esteve no seminário. Foi recebido com elogios de Gélio Fregapani, outro general da reserva.

Em maio de 2005, um mês após o presidente Lula ter homologado a terra indígena, Fregapani tornou público um relatório sobre o assunto, produzido por ele para o Grupo de Trabalho da Amazônia - colegiado informal constituído por setores de inteligência das Forças Armadas e da Polícia Federal. Segundo o texto, reservas indígenas têm sido criadas na Amazônia sob pressão de ONGs internacionais - que estariam na região a serviço de potências estrangeiras, preocupadas com questões geopolíticas e interessadas nas suas riquezas, especialmente minérios.

Essa questão da geopolítica voltou a ganhar corpo entre os militares com os recentes atritos entre Colômbia e Venezuela - esta última situada na linha norte da reserva.

Na época do relatório, Fregapani chefiava o escritório da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), em Roraima. Foi afastado, mas ainda é lembrado por pessoas da região.

É o caso de um sujeito que se apresenta como ex-militar e se instalou semanas atrás na sede da Fazenda Destino, uma das áreas da reserva onde Quartiero mantém seus vastos e produtivos arrozais. Apresentando-se apenas como Álvaro, ele gosta de contar que esteve em Angola nos anos 80, integrando a Força de Paz da ONU; e de elogiar Fregapani. Indagado sobre o que faz na fazenda, disse: “Vou escrever um livro sobre a resistência.”

Em Boa Vista, num modesto casarão do Bairro São Vicente, sede do Conselho Indigenista de Roraima, seu coordenador-geral, o macuxi Dionito de Souza, lembrou que o Exército participou das primeiras etapas da Upatakon. E reclamou contra seu afastamento: “Por que isso? Estão do lado dos arrozeiros e contra os índios?”

Ele também reclamou do general Eliéser Monteiro, comandante da 1.ª Brigada de Infantaria de Selva, responsável pelo controle das fronteiras de Roraima: “O general disse que são os arrozeiros que vivificam essa faixa de fronteira. E nós, índios? Somos desnecessários?”

Foi provavelmente por causa desses arranhões que os índios impuseram ao general, no início de março, uma cena constrangedora. Foi durante a visita do ministro Mangabeira Unger (Políticas de Longo Prazo) à região. Os líderes indígenas da Raposa realizavam uma conferência e convidaram o ministro, que antes de assumir havia dito que o governo Lula é “o mais corrupto da história”. Ele estava prestes a embarcar num helicóptero do Exército, ao lado do general, quando chegou a informação de que o convite era para o ministro. Só.

Monteiro deixou o local sem dizer nada. Em fevereiro, ao levar um grupo de parlamentares à reserva dos ianomâmis, ele ouviu que não deveria ir à comunidade sem ser convidado. Respondeu que, legalmente, não precisa de autorização nem da Funai para adentrar terra. Por Roldão Arruda - O Estado de São Paulo

Nenhum comentário: