Ocupar as fronteiras

EDITORIAL da Folha de São Paulo

Ao assinar documento das Nações Unidas que prevê autodeterminação para índios, Itamaraty contrariou a Constituição

O acalorado debate em torno da demarcação das terras indígenas no Brasil seria menos belicoso se o Itamaraty tivesse se recusado a endossar, no ano passado, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. O documento contém disposições que afrontam a Constituição brasileira e, portanto, não têm força de lei interna. Serve, contudo, para confundir a discussão.

O acervo constitucional brasileiro não abriga o conceito de "povos" nem de "nações" indígenas. A lei fundamental admite apenas uma nação, um território e uma população, a brasileira.

O texto da ONU, no entanto, trata os "povos indígenas" como sujeitos universais de direitos e vai além: prescreve, no artigo 3º, a sua "autodeterminação". Esses povos - continua o documento - "determinam livremente sua condição política".

Dois minutos de reflexão bastariam para concluir que tal afirmação de princípios não agride apenas a Constituição brasileira, mas a tradição que consagrou o protagonismo dos Estados modernos. A autodeterminação dos povos não se define com base em raças ou etnias. Trata-se da afirmação de uma comunidade de natureza política, que passa a exercer o governo legítimo sobre um determinado território.

Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia - países onde a questão indígena é importante - perceberam a esparrela e não assinaram a declaração da ONU. Evitaram importar uma polêmica inútil para dentro de suas fronteiras.

Outro ponto insustentável na declaração das Nações Unidas é o que restringe ações militares em terras indígenas. As áreas ocupadas por índios no Brasil são propriedade da União e, para fins de defesa nacional, estão sujeitas à presença permanente das Forças Armadas.

Na fronteira, definida como a faixa de 150 km até a divisa com outros países, a presença militar é mandatória. Na Amazônia, ela deveria ser ainda mais reforçada, com maior deslocamento de contingentes hoje baseados no sul do país.

A Carta de 1988 é cuidadosa a respeito dos direitos dos índios. Não emprega, por exemplo, os termos "reserva" - de conotação fechada, autonomista- e "propriedade" para designar a terra indígena e a relação jurídica que com ela mantêm os índios. O decreto presidencial, contestado no Supremo Tribunal Federal, que homologou a terra indígena Raposa/Serra do Sol, em Roraima, manteve-se na linha prescrita pela lei fundamental.

Mas o Itamaraty resolveu dar a sua contribuição para uma celeuma gratuita a respeito do assunto. Assinar documentos internacionais que contrariam a Constituição do país é um erro diplomático elementar.




ÍNDIOS QUEREM TRANSFORMAR RESERVA DE RR EM PÓLO TURÍSTICO

Depois do garimpo o “ecoturismo” - MOVCC

Índios da terra indígena Raposa/Serra do Sol (RR) querem transformar a reserva em pólo turístico. Assim que o STF definir a demarcação da terra indígena, será feito um trabalho de ecoturismo desenvolvido por eles próprios, sob a coordenação do CIR (Conselho Indígena de Roraima), que quer a saída dos arrozeiros e não-índios da terra.

A idéia é aproveitar a fama para o desenvolvimento do turismo na área, de 1,7 milhão de hectares e repleta de rios, cachoeiras, montanhas e trilhas. O centro das atividades ficaria na Vila Surumu, porta de entrada da reserva, localizada a 226 km da capital Boa Vista, onde há aeroporto internacional.

Apesar do interesse dos índios, a FUNAI considera irregular atividades turísticas em terras indígenas. Há um estudo interno no órgão sobre a regularização do turismo nessas terras, ainda sem conclusão - assim como um projeto de lei que tramita na Câmara propondo regulamentar a atividade.

Quando é detectado turismo em reservas, a Funai diz que faz um trabalho de conscientização com a comunidade. À Folha os índios favoráveis à demarcação contínua da Raposa disseram que há um trabalho de mapeamento sendo organizado para identificar possíveis áreas aptas ao desenvolvimento do ecoturismo.

"As atividades não poderão ser desenvolvidas nas áreas que usamos para sobreviver", contou o macuxi Cristovão Galvão, 41. Segundo Galvão, eles querem organizar tudo de modo que toda a comunidade indígena seja beneficiada.

O CIR afirma que o plano de desenvolver atividades na terra indígena já foi aventado pelo governo do Estado e pela Prefeitura de Pacaraima (RR), porém nunca levado adiante. "Não dá para pensar nisso agora. Temos que esperar passar tudo isso", diz Galvão, referindo-se à suspensão do julgamento pelo STF sobre a demarcação da área motivada pelo pedido de vista do ministro Carlos Alberto Direito.

Hoje, índios da Raposa ganham gorjetas de turistas que vão ao monte Roraima. Segundo o CIR, eles guiam os viajantes ou ajudam com as malas. Por Lucas Ferraz – Enviado especial da Folha de São Paulo à raposa/Serra do Sol




RESERVAS DE RS, SC e PA TAMBÉM SÃO OBJETO DE DISPUTA NO SUPREMO

Estados do Sul são alvos de ações da FUNAI, e Pará questiona decreto sobre demarcação; além da Raposa, Roraima contesta homologação da terra São Marcos

Não é só o governo de Roraima, onde fica a terra indígena Raposa/Serra do Sol, que polemiza com o governo federal por causa da demarcação de terras indígenas. Outros três Estados têm disputas com a União no Supremo Tribunal Federal. Rio Grande do Sul e Santa Catarina são alvos de ações da FUNAI no Supremo, enquanto o Pará questionou um decreto disciplinando demarcações.

Segundo levantamento do STF, tramitam atualmente ao menos 114 ações sobre terras indígenas no tribunal. A FUNAI reclama de uma "judicialização" dos procedimentos de reconhecimento de terras. A ação mais recente no STF sobre o tema envolve Santa Catarina. A União e a FUNAI ajuizaram ação no STF para garantir a demarcação da terra Ibirama Lá-Klanô, na região de Vítor Meireles (264 km de Florianópolis). A área, onde vivem 1.300 índios, tem o tamanho de 88 parques Ibirapuera.

Cerca de 300 proprietários de terra foram à Justiça Federal na tentativa de revogar determinação do Ministério da Justiça de fazer a demarcação. O governo do Estado aderiu à ação como parte, junto aos autores do questionamento. O caso acabou indo ao STF em abril.

O governo catarinense diz que a União quer ampliar a área indígena sobre terrenos que são de agricultores desde o século 19. Também contesta duas ampliações e duas demarcações de terras no oeste do Estado, onde um fazendeiro foi morto em confronto com caingangues há quatro anos.

No Rio Grande do Sul, a Funai contesta atuação do governo estadual numa área conhecida como Toldo Indígena Ventarra, em Erebango (376 km de Porto Alegre), onde vivem índios caingangues. A fundação diz que o Estado, nos anos 60, deu posse a agricultores na área indígena. Ao STF o órgão pede revogação dos títulos.

O procurador-geral-adjunto do Rio Grande do Sul, José Kliemann, confirma a concessão. "Na época, a ação foi legítima, não havia certeza quanto à titularidade da terra. As pessoas que lá estão não receberam de má-fé ou invadiram.”

O governo do Pará contestou por 14 anos decreto presidencial que regulou procedimentos de demarcação de áreas indígenas. O Estado pediu a impugnação de homologações que se basearam na lei. Segundo a Procuradoria Geral do Estado, a governadora
Ana Júlia Carepa (PT), ao assumir, desistiu da ação e pediu arquivamento, que ainda não ocorreu.

Roraima, além da Raposa/ Serra do Sol, também contesta homologação da terra indígena São Marcos, vizinha da Raposa.

O coordenador-geral de identificação e demarcação de terras indígenas da Funai, Paulo Santilli, diz que as disputas judiciais desvirtuam o processo de demarcação. "Há espaço para contestações já no âmbito administrativo. No início do processo, são considerados todos os interesses afetados." Por
Felipe Bachtold e José Eduardo Rondon – Folha de São Paulo

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