Cada macaco com seu mandato

Como a política ajudou os homens a ficaram macaquiavélico e a ciência descobriu que a selva está cheia de políticos




Questões símio-sociais

MARCOS SÁ CORRÊA


O senador Jarbas Vasconcelos não está sozinho. O que ele disse outro dia do PMDB os cientistas vêm dizendo há muito tempo dos primatas. Os colegas do senador só querem o poder "para fazer negócios e ganhar comissões"? Tirando as siglas e os cifrões, os chimpanzés, orangotangos e babuínos também.

Nepotismo, abuso de autoridade, traição, rasteira, golpe, mensalão não há figura da crônica política e da patologia sociológica que não tenha passado ultimamente pelos tratados de primatologia, tornando esses livros, para os leigos, muito mais fáceis de ler. O holandês Frans de Waal, decano da especialidade e autor de Eu, Primata, passou anos anotando tudo o que os chimpanzés faziam no zoológico de Arnhem, nos Países Baixos. Viu "blefes", "coalizões" e "trapaças" onde o público só enxerga macaquice. E concluiu que esses eternos "palhaços do reino animal se sentiriam muito à vontade numa arena política".

O que eles mais fazem é exercer o poder em proveito pessoal. Costumam ser "manipuladores" e "arbitrários". Mentem tão bem que seus chefes caminham com o dorso eriçado, simulando passos de lutadores em tatames de sumô, para dar a impressão de serem maiores que a macacada plebéia. E essa, por sua vez, não se cansa de adulá-los, em rituais de obediência que incluem o beija-mão e, melhor ainda, o beija-pé. Aliás, curvar-se diante dos chefes é coisa de chimpanzé.

A bajulação compensa. É do convívio com os manda-chuvas que descem, em cascata, as prerrogativas hierárquicas do bando. Ao passo que o macaco-mór "usa o prestígio obtido com essas homenagens para manter o equilíbrio social", distribuindo favores essenciais, como o acesso às bananas e às fêmeas. Em bom politiquês, isso se chama clientelismo.

Briga-se muito entre os chimpanzés. Mas suas brigas raramente passam de um exercício que serve para reiterar e reforçar a unidade do grupo. O inimigo mesmo é o externo. Cada vez que dois chimpanzés do alto clero se desentendem, os outros tomam partido e todos berram como se estivessem diante das câmeras da TV Senado. Mas, no fim, acaba tudo em catação recíproca de piolho, que é o grande cerimonial da reconciliação.

Adversários aparentemente dispostos a se destroçarem com os dentes foram vistos por Waal, "um minuto depois que as brigas acabavam, correrem um ao encontro do outro, beijar-se, estreitar-se num abraço demorado e fervente, e então começar a se pentear um ao outro". Como legítimos políticos.

Não se vencem as disputas entre os chimpanzés só a dentadas e pontapés. A luta se decide no grito, que convoca o apoio da maioria. Se tiver apoio popular, um bom ibope, o vencedor nem precisa ser o mais forte, e muito menos ter razão no episódio. Leva no voto. Com isso, entre mortos e feridos, quase sempre se salvam todos, prontos para a festa de confraternização que preserva a integridade física dos rivais e a estrepitosa harmonia do conjunto.

Para facilitar os acertos e selar os armistícios, o que não falta é turma do deixa-disso. De preferência, assumem esse papel as matriarcas mais influentes, que às vezes se metem entre os adversários e facilitam os empates técnicos. Waal registrou em cadernos de campo o placar desses conflitos: entre vinte e poucos chimpanzés, havia em média, de mil a 1 500 reconciliações por ano. Só viu uma morte em batalha a de Luit, derrubado ao fim de um reinado como macho alfa que só durou dez semanas, quando se viu trancado num dormitório com dois desafetos e sem a companhia dos súditos.

"A agressão sempre foi atribuída a um instinto incontrolável", comentou Waal, mas na prática ela não pode correr solta entre espécies gregárias, ou "resultaria na dispersão dos indivíduos". Ao estudar os muriquis em Caratinga, a americana Karen B. Strier, autora do livro Faces in the Forest [Faces na Floresta], observou que há macacos mais conciliadores que os mais mitológicos políticos mineiros. "Durante as mais de 1 200 horas de observações que registrei no meu caderno de notas durante meu primeiro ano na floresta", ela escreveu, "só estive diante de 31 interações entre indivíduos do grupo que poderiam ser remotamente consideradas agressivas." O muriqui é tão cordato que, quando começa um acasalamento à sua frente, os machos fazem fila, esperando silenciosamente a sua vez de chegar à fêmea.

"Isso é oportunismo", queixou-se outro dia o deputado Ciro Gomes, quando "o PT fez aliança com quem no mensalão estava querendo dar um golpe". Os políticos brasileiros tiveram a quem puxar. Como explicou no dia seguinte o senador José Sarney, decano da conciliação irrestrita, o entendimento "faz parte do rito político e é democrático". Ele provavelmente só não imagina há quantos milhões de anos isso é verdade.

Cinco anos atrás, os achados dos primatólogos chamaram a atenção do cientista político Sérgio Abranches, que passou a colecionar exemplos sobre os costumes sociais dos macacos que servissem para decifrar o código genético "do caudilhismo, do clientelismo, do nepotismo" e outros neologismos com que a vida pública nacional enriquece a língua portuguesa, o colunismo político e a crônica policial.

Abranches juntou anedotas sobre chimpanzés que, mesmo sendo primordialmente vegetarianos, às vezes organizam expedições coletivas de caça aos bonobos, seus primos tão próximos que, à primeira vista, os olhos leigos os confundem com seus caçadores. O mais intrigante, lembra o cientista, é que essas caçadas dificilmente se justificam por falta de comida. Ao contrário, "é a abundância de frutas que estimula a formação desses comandos". Como os chimpanzés já estão reunidos e os bonobos, próximos, atacá-los é um pulo. Ou muitos pulos, o que, no caso, não faz diferença.

São corridas sanguinárias pelas copas das árvores, que terminam com os chimpanzés comungando a carne do bonobo, servida aos pedaços, cerimoniosamente, para lubrificar todo tipo de relações, a começar pelas sexuais. Abranches pretendia escrever um livro sobre os padrões de conduta que se repetem entre políticos, arrastados que são por mecanismos hereditários que nunca afloram à consciência dos protagonistas.

“É o caso típico dos grupos que sobem ao governo para renová-lo e passam, imediatamente, a macaquear os hábitos da elite tradicional”, ele explica.

Seu projeto acabou engavetado, em 2004, assim que os fatos de Brasília superaram fartamente as metáforas de Arnhem. Mas ficou a constatação de que os políticos nunca estiveram tão próximos dos macacos, desde que os últimos antepassados comuns de homens e chimpanzés palmilharam a Terra, há pelo menos 5 milhões de anos.

A distância entre chimpanzés e humanos não pára de diminuir. Geneticamente, a distância entre eles está reduzida a 1,6% do DNA. Em relação aos gorilas, é um pouco maior: 2,3%. Com os orangotangos fica em 3,6%.

Como se não faltasse o índice de parentesco estendido a 98,4% do genoma, abriu-se há pouco mais uma fronteira a última, a do cérebro. Pesquisadores brasileiros anunciaram, em estréia mundial, uma contagem inédita de neurônios, com 86 bilhões para os homens e 32 bilhões para gorilas ou orangotangos.

Parece uma distância segura. Mas não o suficiente para caracterizar o cérebro humano como "um ponto fora da curva", advertiu um dos autores da descoberta, o cientista Roberto Lent, chefe do Laboratório de Neuroplasticidade da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em sua opinião, "o homem é um primata como outro qualquer".

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