Memorial lembra vítimas (do comunismo) da fome na Ucrânia

"HOLODOMOR" – ASSASSINATO POR FOME

Mas como podemos manter o silêncio sobre o que ocorreu? Nosso povo foi vítima de um grande crime". The New York Times


Um quarto de século atrás, um historiador ucraniano chamado Stanislav Kulchytsky foi instruído pelos líderes soviéticos que ainda dominavam seu país a retratar a fome que matou milhões de ucranianos no começo dos anos 30 como um acidente inevitável, uma espécie de desastre natural. Ele devia absolver o Partido Comunista de toda culpa. Sustentar o legado de Stálin.

No entanto, Kulchytsky decidiu que não aceitaria a missão que lhe foi atribuída. Recentemente, de sua posição no topo de um memorial às vítimas daquela imensa onda de fome, ele relembrou sua decisão como um dos pontos de inflexão em um movimento que durou décadas e cujo objetivo era desenterrar a verdade com relação ao período. E o memorial em si, em formato de uma alta vela com uma eterna chama dourada, lhe parecia em certo sentido uma culminação de seus esforços.

"É um sinal de nosso respeito por aquele passado", disse Kulchytsky. "Porque todo mundo manteve o silêncio sobre a fome por tantos anos. E quando se tornou enfim possível falar a respeito, nada foi dito. E já se foram três gerações desde que tudo aconteceu".

O memorial de concreto teve sua cerimônia de dedicação em novembro do ano passado, o 75° aniversário da grande fome, em um parque de Kiev, em uma colina por sobre o rio Dnipro, à sombra dos domos em forma de cebola de um mosteiro cristão ortodoxo muito reverenciado. Com mais de 30 metros de altura, o memorial no futuro abrigará um pequeno museu que oferecerá depoimentos dos sobreviventes da grande fome bem como informações sobre as aldeias ucranianas que sofreram com ela.

Na União Soviética, as autoridades haviam praticamente proibido qualquer discussão da fome, mas por volta dos anos 80 os Estados Unidos e outros países estavam conduzindo investigações sobre o assunto por conta própria, muitas vezes por pressão de imigrantes ucranianos e seus descendentes.

Em resposta, os dirigentes comunistas iniciaram uma campanha de propaganda cujo objetivo era atenuar a importância da fome e demonstrar que as mortes na verdade haviam sido causadas por surtos imprevistos de seca ou de escassez de alimentos. Kulchytsky diz ter recebido a tarefa de conduzir pesquisas para provar essas suposições, mas que na verdade concluiu que a fome havia sido causada por ação humana.

"Tornei-me convencido de que nem tudo era como eu um dia havia pensado", ele declarou.

O historiador se recusou a apresentar resultados falsificados para suas pesquisas, e em lugar disso divulgou publicamente o material verdadeiro, escapando a medidas punitivas apenas porque a era de abertura, glasnost, havia começado sob o novo líder soviético Mikhail Gorbatchev.

A grande fome é conhecida na Ucrânia como "Holodomor" - literalmente morte ou assassinato por fome -, e a campanha pelo reconhecimento dos fatos vem desempenhando papel significativo quanto a dar forma à busca ucraniana por uma identidade nacional na era pós-soviética. Essa busca também tornou ainda mais hostis as relações com o Kremlin, em mais uma das disputas que a dissolução da União Soviética, em 1991, legou.

O governo pró-ocidental em Kiev, que chegou ao poder depois de uma revolução em 2004, classifica a fome como um genocídio ordenado por Stálin porque ele desejava dizimar a população ucraniana e sufocar as aspirações de independência quanto a Moscou.

Os arquivos deixam claro que nenhuma outra conclusão é possível, afirma Kulchytsky, diretor assistente do Instituto de História Ucraniana, em Kiev.

Kulchytsky tem 72 anos mas parece mais jovem, como se de alguma maneira tivesse conseguido sobreviver ao efeito debilitante de tantas pesquisas sobre os horrores do passado.

"É difícil de suportar", ele reconheceu. "Os documentos sobre canibalismo são especialmente difíceis de ler".

Kulchytsky disse que era inegável que pessoas de toda a União Soviética morreram de fome em 1932 e 1933, quando os comunistas começaram a travar uma guerra contra os camponeses, para criar fazendas coletivas. Mas ele alegou que as autoridades que comandavam a Ucrânia foram muito além, e que na prática elas colocaram muitas aldeias em uma espécie de quarentena, garantindo que passassem fome.

"Se em outras regiões as pessoas passavam fome e morriam por isso, aqui as pessoas foram mortas deliberadamente pelo uso da fome", disse Kulchytsky. "Essa é a diferença absoluta".

Nos últimos anos, o presidente ucraniano Viktor Yushchenko vem falando regularmente sobre a fome, e tentou até mesmo transformar em crime qualquer tentativa de negá-la. A Ucrânia pediu que outros países reconheçam a grande fome como genocídio e que estabeleçam memoriais. Um deles está sendo construído em Washington.

Em Kiev, o memorial começou como local de peregrinação. "É claro que ele é necessário", disse Hrigory Mikhailenko, 75 anos, executivo de construção do centro da Ucrânia, que visitou o local durante uma viagem de negócios. "Tanta gente morreu. Quatro membros de minha família. É muito importante relatar o que aconteceu. É por isso que a Rússia nos está pressionando".

A Rússia reprova o memorial. Em lugar de comparecer à cerimônia dedicatória, o presidente russo Dmitri Medvedev enviou a Yushchenko uma carta em que o acusa de usar a fome para desacreditar a Rússia.

"Não aprovamos de maneira alguma a repressão promovida pelo regime stalinista contra todo o povo soviético", escreveu Medvedev. "Mas dizer que ela tinha por objetivo destruir os ucranianos significa ir contra os fatos e tentar criar um subtexto nacionalista para uma tragédia comum a todos".

No mês passado, historiadores e arquivistas russos tentaram reforçar os argumentos do Kremlin, com um DVD e um livro de documentos históricos que, afirmaram, demonstravam que a fome não havia sido deliberadamente imposta à Ucrânia. Muitos dos documentos foram traduzidos para o inglês, o que sublinha o fato de que os dois países estão travando sua batalha no cenário internacional.

Kulchytsky disse que o Kremlin temia que, se reconhecesse a verdade, a Rússia, vista como Estado sucessor da União Soviética, poderia enfrentar pedidos de reparações. Ainda assim, ele declarou que não acataria declarações incorretas vindas do lado ucraniano, tampouco.

Por exemplo, Yushchenko declarou que até 10 milhões de ucranianos morreram, enquanto Kulchytsky estima o total de vítimas em 3,5 milhões. E o professor tampouco aprecia o projeto do memorial, alegando que teria preferido alguma das demais propostas. Mas disse não ter dúvidas de que o país precisa ser relembrado de sua História.

"Conheço muita gente, entre as quais algumas pessoas bastante famosas - inteligentes, intelectuais -, cujos parentes e avós morreram durante a grande fome e ainda assim falam com aspereza contra dedicarmos atenção demais ao Holodomor", disse Kulchytsky. "Eles não o consideram como parte do presente.
Mas como podemos manter o silêncio sobre o que ocorreu? Nosso povo foi vítima de um grande crime".
Portal Terra
The New York Times

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