Por ALI KAMEL
A diplomacia brasileira escapou de escrever amanhã uma página que seria vergonhosa para a sua história.
Quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva estivesse apertando a mão do presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, estaria emprestando a sua honradez a um regime manchado de sangue: uma teocracia sanguinária que mantém o seu próprio povo sob controle atroz, proibindo o dissenso político, perseguindo mulheres, liderando as estatísticas de condenação à morte de menores, enforcando homossexuais, impondo regras a partir de uma interpretação radical e anacrônica do Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos. Nenhum pragmatismo econômico justificaria acolher um líder de um regime assim.
Não haveria relativismo cultural capaz de explicar a condescendência do governo brasileiro, caso a visita não tivesse sido cancelada pelo Irã: a democracia e o respeito aos direitos humanos são valores universais e absolutos, e, portanto, sua defesa deve nortear sempre a nossa política externa.
O princípio de que devemos respeitar o modelo de vida que cada povo escolhe para si só se aplica aos povos que podem escolher democraticamente o seu modelo de vida. Isso não existe no Irã, onde tudo é determinado, não pelo Alcorão, mas pela interpretação ensandecida que um grupo de clérigos faz dele. Só isso já bastaria para que o Brasil considerasse indesejável a visita de Ahmadinejad, o que, aparentemente, não aconteceu, já que foi o iraniano que não quis vir. Mas há mais: aceitar em nosso país o chefe de governo de um país que nega o Holocausto, defende a extinção de Israel e é acusado de financiar grupos terroristas com este fim seria um tapa na cara não somente da comunidade judaica brasileira, mas de todos os democratas brasileiros, judeus, cristãos, muçulmanos, adeptos de outras religiões ou ateus.
Um erro, que não traria benefícios nem ao Brasil nem ao mundo.
Alguns defendem a esdrúxula ideia de que isolar o Irã não resolve: a atitude correta seria incluí-lo na comunidade internacional, para que, assim, o país abandone as práticas que o mundo democrático condena. Que sentido faz isso? O mundo não deve aceitar o Irã para que ele abandone as suas práticas condenáveis; é o Irã que deve abandonar as suas práticas condenáveis para ser aceito pela comunidade internacional. A História nos dá essa lição. Para apaziguar Hitler, Reino Unido e França aceitaram em 1938 ceder à Alemanha os sudetos, territórios tchecos povoados por pessoas cuja língua era o alemão, na esperança de que, assim, não haveria guerra. E o que se viu é que nada deteve Hitler, que, poucos meses depois, invadiu a Polônia, dando início à Segunda Guerra Mundial e provocando a morte de milhões de inocentes, entre eles seis milhões de judeus europeus. Acolher Ahmadinejad na suposição de que ele mude o comportamento do seu país graças ao convívio civilizado com as nações tem a mesma lógica. Apenas dará um sinal ao Irã: o país pode seguir oprimindo o próprio povo e adotar uma retórica antissemita, pois nações democráticas, honradas e responsáveis, como o Brasil, dão de ombros para isso.
Ahmadinejad, no fundo, é apenas uma marionete nas mãos dos aiatolás iranianos, pois quem manda no país é Ali Khamenei, cujo cargo, vitalício, diz tudo: líder supremo. Ele é o comandante em chefe das Forças Armadas, controla os serviços secretos e de segurança, nomeia o chefe do Judiciário e é o único com poder de decretar guerra ou paz. É ele também quem diz quem pode e quem não pode concorrer a todos os cargos, em todas as eleições, e o que podem ou não podem fazer os eleitos. Não importa, porém, que a estatura de Ahmadinejad seja tão baixa: de todo modo, ele é a face do regime para o mundo. Apertar a sua mão seria fechar os olhos para os horrores que acontecem naquele país.
Desde que tomou posse em 2005, o presidente iraniano levou a cabo uma radicalização desejada pelos aiatolás, e, sob o seu governo, a decretação da pena de morte, em processos judiciais opacos, teve um salto de 300%: foram 86 em 2005 e, em 2007, pularam para 317 . Apenas em um só dia, 27/07/2008, 29 pessoas foram mortas, mas o governo só liberou informações sobre 10. O Irã lidera as execuções de menores (a pena é executada somente quando o menor completa 18 anos, o que não é atenuante): em 2005, 16 jovens foram mortos, enquanto 130 aguardavam no corredor da morte. Ano passado, chegouse a divulgar que a pena capital não poderia mais ser imposta a menores, mas a informação não se confirmou, pois quando o crime é homicídio a pena de morte continua válida. Embora oficialmente o apedrejamento de mulheres esteja suspenso desde 2002, entidades ligadas aos direitos humanos garantem que as mortes continuam, clandestinamente. Os homossexuais sofrem opressão horrenda e também são mortos impiedosamente.
Recentemente, a diplomacia brasileira constrangeu o presidente Lula ao não evitar que, no banquete oficial da reunião da Cúpula Árabe, ele fosse colocado ao lado do ditador do Sudão, acusado de genocídio pela Corte Criminal de Haia. Ao ver o que o esperava, Lula deu uma desculpa qualquer e simplesmente não almoçou.
Desta vez, seríamos nós os constrangidos.
E, infelizmente, aos olhos do mundo, não teríamos condições de adotar o mesmo expediente de Lula. Amanhã, seria um dia de vergonha para todos nós. Tomara que ele tenha sido evitado definitivamente.
ALI KAMEL é jornalista. E-mail: ali.kamel@oglobo.com.br. - O Globo
A diplomacia brasileira escapou de escrever amanhã uma página que seria vergonhosa para a sua história.
Quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva estivesse apertando a mão do presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, estaria emprestando a sua honradez a um regime manchado de sangue: uma teocracia sanguinária que mantém o seu próprio povo sob controle atroz, proibindo o dissenso político, perseguindo mulheres, liderando as estatísticas de condenação à morte de menores, enforcando homossexuais, impondo regras a partir de uma interpretação radical e anacrônica do Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos. Nenhum pragmatismo econômico justificaria acolher um líder de um regime assim.
Não haveria relativismo cultural capaz de explicar a condescendência do governo brasileiro, caso a visita não tivesse sido cancelada pelo Irã: a democracia e o respeito aos direitos humanos são valores universais e absolutos, e, portanto, sua defesa deve nortear sempre a nossa política externa.
O princípio de que devemos respeitar o modelo de vida que cada povo escolhe para si só se aplica aos povos que podem escolher democraticamente o seu modelo de vida. Isso não existe no Irã, onde tudo é determinado, não pelo Alcorão, mas pela interpretação ensandecida que um grupo de clérigos faz dele. Só isso já bastaria para que o Brasil considerasse indesejável a visita de Ahmadinejad, o que, aparentemente, não aconteceu, já que foi o iraniano que não quis vir. Mas há mais: aceitar em nosso país o chefe de governo de um país que nega o Holocausto, defende a extinção de Israel e é acusado de financiar grupos terroristas com este fim seria um tapa na cara não somente da comunidade judaica brasileira, mas de todos os democratas brasileiros, judeus, cristãos, muçulmanos, adeptos de outras religiões ou ateus.
Um erro, que não traria benefícios nem ao Brasil nem ao mundo.
Alguns defendem a esdrúxula ideia de que isolar o Irã não resolve: a atitude correta seria incluí-lo na comunidade internacional, para que, assim, o país abandone as práticas que o mundo democrático condena. Que sentido faz isso? O mundo não deve aceitar o Irã para que ele abandone as suas práticas condenáveis; é o Irã que deve abandonar as suas práticas condenáveis para ser aceito pela comunidade internacional. A História nos dá essa lição. Para apaziguar Hitler, Reino Unido e França aceitaram em 1938 ceder à Alemanha os sudetos, territórios tchecos povoados por pessoas cuja língua era o alemão, na esperança de que, assim, não haveria guerra. E o que se viu é que nada deteve Hitler, que, poucos meses depois, invadiu a Polônia, dando início à Segunda Guerra Mundial e provocando a morte de milhões de inocentes, entre eles seis milhões de judeus europeus. Acolher Ahmadinejad na suposição de que ele mude o comportamento do seu país graças ao convívio civilizado com as nações tem a mesma lógica. Apenas dará um sinal ao Irã: o país pode seguir oprimindo o próprio povo e adotar uma retórica antissemita, pois nações democráticas, honradas e responsáveis, como o Brasil, dão de ombros para isso.
Ahmadinejad, no fundo, é apenas uma marionete nas mãos dos aiatolás iranianos, pois quem manda no país é Ali Khamenei, cujo cargo, vitalício, diz tudo: líder supremo. Ele é o comandante em chefe das Forças Armadas, controla os serviços secretos e de segurança, nomeia o chefe do Judiciário e é o único com poder de decretar guerra ou paz. É ele também quem diz quem pode e quem não pode concorrer a todos os cargos, em todas as eleições, e o que podem ou não podem fazer os eleitos. Não importa, porém, que a estatura de Ahmadinejad seja tão baixa: de todo modo, ele é a face do regime para o mundo. Apertar a sua mão seria fechar os olhos para os horrores que acontecem naquele país.
Desde que tomou posse em 2005, o presidente iraniano levou a cabo uma radicalização desejada pelos aiatolás, e, sob o seu governo, a decretação da pena de morte, em processos judiciais opacos, teve um salto de 300%: foram 86 em 2005 e, em 2007, pularam para 317 . Apenas em um só dia, 27/07/2008, 29 pessoas foram mortas, mas o governo só liberou informações sobre 10. O Irã lidera as execuções de menores (a pena é executada somente quando o menor completa 18 anos, o que não é atenuante): em 2005, 16 jovens foram mortos, enquanto 130 aguardavam no corredor da morte. Ano passado, chegouse a divulgar que a pena capital não poderia mais ser imposta a menores, mas a informação não se confirmou, pois quando o crime é homicídio a pena de morte continua válida. Embora oficialmente o apedrejamento de mulheres esteja suspenso desde 2002, entidades ligadas aos direitos humanos garantem que as mortes continuam, clandestinamente. Os homossexuais sofrem opressão horrenda e também são mortos impiedosamente.
Recentemente, a diplomacia brasileira constrangeu o presidente Lula ao não evitar que, no banquete oficial da reunião da Cúpula Árabe, ele fosse colocado ao lado do ditador do Sudão, acusado de genocídio pela Corte Criminal de Haia. Ao ver o que o esperava, Lula deu uma desculpa qualquer e simplesmente não almoçou.
Desta vez, seríamos nós os constrangidos.
E, infelizmente, aos olhos do mundo, não teríamos condições de adotar o mesmo expediente de Lula. Amanhã, seria um dia de vergonha para todos nós. Tomara que ele tenha sido evitado definitivamente.
ALI KAMEL é jornalista. E-mail: ali.kamel@oglobo.com.br. - O Globo
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