Seis anos e meio deveriam, talvez, ser mais do que suficientes para o País já não ficar perplexo com as impropriedades que ornamentam os discursos de cada dia do seu primeiro mandatário. Desde que chegou ao Palácio do Planalto, não houve, com efeito, ocasião ou circunstância que o presidente Lula considerasse imprópria para dizer o que lhe viesse à cabeça. Em linguagem corrente, o homem simplesmente não se toca. Mas o efeito cumulativo de seus disparates, no ambiente e no momento que for - desde uma entrevista de passagem, em meio ao atropelo dos jornalistas, até uma solenidade formal de governo -, antes aviva do que anestesia o pasmo provocado pela absoluta falta de autocensura que sustenta tais enormidades.
O presidente, definitivamente, não possui o que o público chama de desconfiômetro. Quando lhe faltam argumentos racionais para defender suas teses, desanda a afirmar coisas de que em geral as pessoas, que dirá um chefe de Estado, poupam os que as ouvem, quanto mais não seja para resguardar a própria dignidade.
De toda maneira, o que parece contar para Lula e o que o empurra para longe de qualquer vestígio de decoro é o intento de dar o seu recado, quantas vezes julgar necessário - e o resto que se lixe. O exemplo da hora, naturalmente, são as suas demonstrações públicas de alinhamento incondicional com o presidente do Senado, José Sarney, imerso em evidências irrefutáveis de malfeitos que o despojaram das condições mínimas para continuar no cargo e conservar o mandato.
Lula parece acreditar que as suas ações em socorro do seu principal aliado no Congresso, de quem se converteu no mais vistoso guarda-costas, não apenas haverão de garantir a sua invulnerabilidade, como ainda o farão se lançar com entusiasmo na duvidosa empreitada de unir o PMDB ao redor da candidatura Dilma Rousseff em 2010. Além de agir, enquadrando, por exemplo, a bancada petista no Senado, ansiosa por se dissociar do oligarca - se não em nome da ética, pelos cálculos eleitorais da maioria dos seus membros -, Lula acha que precisa mostrar a Sarney, por palavras, que se identifica plenamente com o núcleo da sua autodefesa, que ele externou no discurso de 16 de junho: a sua biografia o torna inimputável. (O que a opinião pública pensa disso não vem ao caso.)
Dois dias depois, no que o presidente-torcedor poderia chamar de jogada ensaiada, Lula declarou, para assombro dos repórteres que o acompanhavam ao Casaquistão, que Sarney não pode ser tratado como "pessoa comum". E foi isso, numa versão verdadeiramente escandalosa, que ele reiterou anteontem na solenidade de posse do novo procurador-geral da República, Roberto Gurgel. Envergonhando o emblema da República que adornava a tribuna de onde discursava, Lula advertiu o Ministério Público (MP) a não atuar "pensando apenas na biografia de quem está fazendo a investigação" - por si só, uma insinuação próxima do insulto -, mas "pensando, da mesma forma, na biografia de quem está sendo investigado". Ou seja, o MP não pode esquecer que todos são iguais perante a lei, mas alguns são mais iguais que os outros. Aqui já se trata de teatro do absurdo.
Antes, Lula aconselhara o MP a "investigar fatos, tirar as suas conclusões e tomar as providências coerentes com elas", como se não fosse exatamente isso o que fez o então procurador-geral Antonio Fernando Souza, no caso do mensalão, indiciando 40 suspeitos, de variadas biografias, como membros de uma "sofisticada organização criminosa" interessada em "garantir a permanência do partido (o PT) no poder". A vida pregressa de um réu somente pesa - como circunstância atenuante ou agravante - na hora do julgamento. Não se ofenderá a inteligência do presidente da República sugerindo que possa ter confundido as condutas apropriadas aos agentes públicos em cada etapa do devido processo legal.
Lula não é um néscio: o seu problema, ou melhor, o problema do País, sob a sua liderança, é a sem-cerimônia com que dá ao povo que o admira um exemplo perverso de como tratar as instituições. Elas têm sido a primeira vítima de sua obstinação em conseguir o que pretende - controlar o processo político e fazer a sua sucessora. Ele deve imaginar que a sua excepcional biografia a tudo o autoriza. Tanto pior.
Correção - No editorial Linhas ocupadas, publicado ontem, onde se lê "Passados oito dias, Agaciel Maia assina o ato - secreto - de nomeação do namorado da filha do senador", leia-se "da neta do senador". O Estado de S. Paulo
O presidente, definitivamente, não possui o que o público chama de desconfiômetro. Quando lhe faltam argumentos racionais para defender suas teses, desanda a afirmar coisas de que em geral as pessoas, que dirá um chefe de Estado, poupam os que as ouvem, quanto mais não seja para resguardar a própria dignidade.
De toda maneira, o que parece contar para Lula e o que o empurra para longe de qualquer vestígio de decoro é o intento de dar o seu recado, quantas vezes julgar necessário - e o resto que se lixe. O exemplo da hora, naturalmente, são as suas demonstrações públicas de alinhamento incondicional com o presidente do Senado, José Sarney, imerso em evidências irrefutáveis de malfeitos que o despojaram das condições mínimas para continuar no cargo e conservar o mandato.
Lula parece acreditar que as suas ações em socorro do seu principal aliado no Congresso, de quem se converteu no mais vistoso guarda-costas, não apenas haverão de garantir a sua invulnerabilidade, como ainda o farão se lançar com entusiasmo na duvidosa empreitada de unir o PMDB ao redor da candidatura Dilma Rousseff em 2010. Além de agir, enquadrando, por exemplo, a bancada petista no Senado, ansiosa por se dissociar do oligarca - se não em nome da ética, pelos cálculos eleitorais da maioria dos seus membros -, Lula acha que precisa mostrar a Sarney, por palavras, que se identifica plenamente com o núcleo da sua autodefesa, que ele externou no discurso de 16 de junho: a sua biografia o torna inimputável. (O que a opinião pública pensa disso não vem ao caso.)
Dois dias depois, no que o presidente-torcedor poderia chamar de jogada ensaiada, Lula declarou, para assombro dos repórteres que o acompanhavam ao Casaquistão, que Sarney não pode ser tratado como "pessoa comum". E foi isso, numa versão verdadeiramente escandalosa, que ele reiterou anteontem na solenidade de posse do novo procurador-geral da República, Roberto Gurgel. Envergonhando o emblema da República que adornava a tribuna de onde discursava, Lula advertiu o Ministério Público (MP) a não atuar "pensando apenas na biografia de quem está fazendo a investigação" - por si só, uma insinuação próxima do insulto -, mas "pensando, da mesma forma, na biografia de quem está sendo investigado". Ou seja, o MP não pode esquecer que todos são iguais perante a lei, mas alguns são mais iguais que os outros. Aqui já se trata de teatro do absurdo.
Antes, Lula aconselhara o MP a "investigar fatos, tirar as suas conclusões e tomar as providências coerentes com elas", como se não fosse exatamente isso o que fez o então procurador-geral Antonio Fernando Souza, no caso do mensalão, indiciando 40 suspeitos, de variadas biografias, como membros de uma "sofisticada organização criminosa" interessada em "garantir a permanência do partido (o PT) no poder". A vida pregressa de um réu somente pesa - como circunstância atenuante ou agravante - na hora do julgamento. Não se ofenderá a inteligência do presidente da República sugerindo que possa ter confundido as condutas apropriadas aos agentes públicos em cada etapa do devido processo legal.
Lula não é um néscio: o seu problema, ou melhor, o problema do País, sob a sua liderança, é a sem-cerimônia com que dá ao povo que o admira um exemplo perverso de como tratar as instituições. Elas têm sido a primeira vítima de sua obstinação em conseguir o que pretende - controlar o processo político e fazer a sua sucessora. Ele deve imaginar que a sua excepcional biografia a tudo o autoriza. Tanto pior.
Correção - No editorial Linhas ocupadas, publicado ontem, onde se lê "Passados oito dias, Agaciel Maia assina o ato - secreto - de nomeação do namorado da filha do senador", leia-se "da neta do senador". O Estado de S. Paulo
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