O desmonte da Receita

A REBELIÃO NA RECEITA FEDERAL NÃO É UM FATO ISOLADO

A carta dos demissionários toca na ferida que será a marca da atual administração: a confusão entre o Estado e o governo. Isso nunca havia ocorrido na Receita. Nunca havia acontecido no Ipea, no BNDES, no Itamaraty. É um tempo em que há perseguição política e quebra de regras de ouro, como a de que os funcionários servem ao país, os governos passam.

Esta semana o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgou mais um dos seus “Comunicados da Presidência”, que o órgão inventou na atual gestão. O texto comete um erro crasso na opinião dos economistas José Roberto Afonso e Samuel Pessoa, que analisaram o estudo. O documento sustenta que a produtividade do setor público cresceu mais do que a do setor privado, mas compara alhos e bugalhos. É muito diferente o cálculo da produtividade do setor privado, que tem o que contabilizar como produção, e o mesmo cálculo do setor público. Por Miriam Leitão

Afonso e Pessoa explicam que o conceito de valor agregado usado pelas Contas Nacionais do IBGE, seguindo padrões internacionais, estabelece que a produção no setor público é calculada pelo aumento dos salários e das despesas. A metodologia não permite a comparação com o setor privado. E dão um exemplo: se uma empresa contrata empregados e os deixa em casa dormindo, perde produtividade; se o setor público fizer isso, a produtividade não cai. O estudo da presidência do Ipea tem conclusões esquisitas como a de que a produtividade de Roraima, por exemplo, aumentou 136%; a de São Paulo, 0,7%; e a do Espírito Santo caiu 7,4%. Os estados que fizeram choque de eficiência e gestão não tiveram ganhos de produtividade.

Ou até perderam.
O estudo feito de encomenda para justificar o crescimento dos gastos de pessoal e de custeio, e para sustentar o discurso estatista é um exemplo, mais um, do que foi feito no Ipea.

No começo, uma caça às bruxas, depois um concurso público viciado e dirigido, e por fim, o uso da marca Ipea para apresentar estudos de critérios técnicos duvidosos e endereço certo. Os bons funcionários do órgão, os que estão lá servindo ao Estado, são postos na geladeira.

O Ipea foi criado para fazer avaliações críticas e independentes das políticas públicas, e assim ajudar os governos a corrigir rumos e evitar erros.

O governo Lula interferiu nas carreiras de Estado de forma sistemática. Fez isso tantas vezes que ao longo de sete anos o país foi achando natural o que não se pode aceitar. A carta dos superintendentes e funcionários da Receita Federal serviu como um grito de alerta contra o desmonte que deixará sequelas nas próximas administrações.

Foi assim também no BNDES no começo do governo.

Tem sido assim no Itamaraty.

Da patética lista de livros obrigatórios que lembrava os regimes fascistas, passou-se para uma política seletiva de promoção e envio para postos relevantes.

Os leais ao atual grupo no poder foram nomeados para as principais embaixadas mesmo que não tivessem acumulado experiência para tal. O Brasil tem perdido com a subutilização de brilhantes diplomatas encostados em “exílios”.

O governo Lula ficará na história como o que mais aumentou o gasto de pessoal, o que mais contratou funcionários, e o que mais profundamente feriu a ideia de que os funcionários de carreira servem ao Estado e não a governos. O que aconteceu na Receita Federal não foi uma briga de um grupo, uma rebelião liderada pela ex-secretária Lina Vieira. Funcionários de carreira, com anos de serviço público divulgaram uma carta séria sobre a qual o país deve refletir. A ingerência política na Receita é inaceitável, por isso o protesto dos superintendentes é tão valioso. Eles recusaram a postura passiva de “deixa como está porque eles logo vão embora”, em troca de uma atitude altiva de denúncia de destruição de critérios básicos. A impessoalidade por exemplo.

A Receita não pode escolher processos para “apressar”.

No caso da Petrobras, a nota inicial da Receita foi clara: a empresa podia mudar o regime contábil desde que isso fosse feito previamente, e não a posteriori. O entendimento foi mudado sob encomenda.

Agora, as outras empresas estão usando essa mudança dos critérios da Receita para ter crédito tributário.

Na época da nota da Receita, que se seguiu à publicação sobre a mudança contábil da Petrobras no jornal O GLOBO, a imprensa registrou que o ministro da Fazenda, Guido Mantega, ficou irritado por saber pelos jornais, já que é do conselho de administração da empresa.

Espero sinceramente que os jornais tenham errado porque essa reação mostra um conflito de interesse. Uma empresa não pode ter privilégios fiscais e tributários porque o ministro que chefia a Receita faz também parte do seu conselho.

O desmonte de vários órgãos através do aparelhamento é sério, é perigoso. Já o caso do conflito Lina versus Dilma é patético. Um Palácio do Planalto que apaga fitas de visitantes, uma Casa Civil que embaralha compromissos na agenda da ministra, um governo que persegue uma exchefe de gabinete da ex-secretária da Receita está, por atos, confessando o que tenta desmentir por palavras. Panorama Econômico - O Globo



QUEBRA DE SELO
Parece contrassenso um governo de tão bem pavimentadas relações com o sindicalismo do setor público enfrentar a debandada de boa parte da cúpula da Receita Federal, um dos órgãos vitais do Estado. A dimensão inédita da entrega de cargos de chefia leva a crer que mesmo a recolocação das peças a toque de caixa não será capaz de apaziguar os ânimos por lá.

Não se tem notícia de um movimento que tenha levado 12 dirigentes do alto escalão de qualquer organismo público — entre os quais um subsecretário e cinco dos dez superintendentes — a entregar o cargo e emitir nota pública de teor político. A ligação das demissões com o afastamento da secretária Lina Vieira pelo ministro Guido Mantega, com apenas onze meses de gestão, é indiscutível.

E se considerarmos como verdadeira a condição de Lina de legítima representante do Unafisco — o sindicato dos auditores fiscais —, conclui-se que o governo mexeu em vespeiro ao destituir a secretária e auxiliares.

A Receita, exemplo típico de instituição de Estado, e não de governo, é conhecida por se assentar sobre grupos com lideranças definidas. Lina Vieira seria uma delas. E logo com ela foi acontecer a questão da fiscalização na Petrobras — historicamente um satélite com vida própria a girar em torno da nave-mãe do Estado brasileiro —, numa queda de braço vencida pela estatal, e a polêmica da suposta conversa entre a ministra Dilma Rousseff, ungida candidata a suceder ao chefe Lula, e Lina sobre a devassa em andamento nas empresas de Fernando Sarney, filho de um forte fiador da candidatura da ministra.

Tudo é combustível para alimentar incêndios potencialmente devastadores. A destituição de Lina Vieira parece ter funcionado como centelha de uma explosão que levou o governo do PT, aliado de corporações sindicais — ironia —, a sair chamuscado pelo grave teor da nota redigida pelos demissionários. São graves as referências feitas pelos funcionários a práticas não republicanas dentro da Receita, à ingerência política na instituição, assim como a insinuação de que houve pressão para a fiscalização tirar o foco de “grandes contribuintes”.

Quais, além da estatal? Como se dão as supostas ingerências políticas? Além dessas interferências, quais outras práticas não republicanas ocorreram ou ocorrem? São perguntas que necessitam de respostas cabais e críveis.

A Receita é guardiã legal de informações da esfera privada da população e empresas. Quebrar esse selo de confiabilidade é investir contra o estado de direito. Editorial O Globo

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