Imaginemos que alguns de nós vivem acorrentados dentro de uma caverna, em uma posição em que conseguimos enxergar apenas as paredes do fundo. Um muro bem alto nos separa do exterior. Fora da caverna, alguns seres desfrutam da liberdade e, às vezes, acendem fogueiras para se aquecer. Dentro da caverna, no entanto, existe uma pequena brecha, o que ocasiona projeções distorcidas da fogueira em seu interior. Sente-se muito medo, pois enxergamos apenas as sombras de seres e de animais desconhecidos. Parecem-nos monstros.
Finalmente, determinada pessoa, um ser mais destemido, dotado de coragem inexplicável, desafia as correntes e o muro da caverna. A despeito dos gritos de terror e do desespero dos habitantes do buraco, ele consegue pôr abaixo as paredes que os impediam de enxergar a verdade. E então acontece o espanto! Onde antes havia sombras, agora se enxergam seres humanos! Libertos dos grilhões, os habitantes da caverna passaram a ser confrontados com a beleza, a natureza, a liberdade e a realidade.
O mito da caverna, narrado por Platão, é uma metáfora sobre a ignorância humana. E a ignorância, em se tratando de cotas raciais, consegue ser tão prejudicial à compreensão do tema quanto o é o racismo. Por Roberta Fragoso Menezes Kaufmann
Escrevo este artigo na condição de advogada voluntária do Partido Democratas para dizer que ganhamos. Quando o ministro Gilmar Mendes proferiu decisão, em 31.7.2009, negando parte do pedido liminar inserido na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 186, por nós ajuizada no STF, determinando a permanência, por enquanto, dos alunos matriculados pelo sistema das cotas raciais na UnB, finalmente pôs abaixo os grilhões que impediam os cérebros dos juristas de se libertar. Explico.
Um pouco antes da decisão do ministro Gilmar, foi noticiado na mídia: “O novo procurador-geral da República esclarece: o princípio da igualdade é compatível com as ações afirmativas”. Quando se escreve uma manchete como essa, o leitor desavisado é levado a compreender: “Ah, então alguém entendia que o princípio da igualdade não era compatível com a proteção das minorias”? Se existe esse alguém no Estado brasileiro não é esta advogada.
Apesar de óbvio, é importante deixar claro, especialmente para os juristas que escrevem sobre as cotas raciais: somos totalmente a favor de ações afirmativas como gênero para integração de minorias. Somos totalmente conscientes de que o modelo de Estado brasileiro é o de Estado Social, que busca promover a diminuição das desigualdades existentes por meio de uma desequiparação jurídica. Às vezes se torna essencial repisar o óbvio, pois são nessas entrelinhas, a partir de subterfúgios, que a maldade do discurso contrário se infiltra. E começam as insinuações e agressões de caráter pessoal, como se os contrários à política de cotas raciais fossem nazistas ou racistas, ou então pertencentes a uma “elite branca”.
Tais considerações se mostram necessárias para que se perceba que não é a constitucionalidade de ações afirmativas, como gênero, ou o reconhecimento de que existe preconceito, racismo e discriminação no Brasil o que está em jogo na ADPF. Discute-se se a implementação de um Estado racializado, ou se o racismo Institucionalizado, nos moldes em que praticado nos EUA, em Ruanda e na África do Sul — onde os direitos foram distribuídos com base na raça — é a medida mais adequada para a construção de uma sociedade mais justa, igual e solidária.
No Brasil, ninguém é excluído pelo fato de ser negro. Aqui, a dificuldade de acesso à educação decorre da precária situação econômica, que termina por influir em uma qualificação profissional deficiente, independentemente da cor da pele. Infelizmente, no Brasil, os negros são as maiores vítimas da desigualdade social: dados do Pnad/IBGE (2001) demonstram que aproximadamente 70% dos pobres são negros. Desse modo, se não é a cor da pele o que impede as pessoas de chegar às universidades, mas a péssima qualidade das escolas a que os pobres brasileiros, sejam brancos, pretos ou pardos, são obrigados a frequentar, cotas raciais não fazem qualquer sentido!
Sou egressa da UnB e testemunha do que vem acontecendo. Desde a implementação das cotas raciais, paulatinamente, a instituição vem sendo tomada por um ódio racial doentio. Atualmente, pode-se afirmar que não há qualquer espaço para liberdade de expressão. Ninguém pode falar uma palavra contrária às cotas sem ser interrompido por vaias fervorosas (incitadas, pasmem, por professores da própria universidade) e ameaças declaradas e ostensivas. São essas as consequências evidentes do modelo de Estado racializado: o ódio irracional. Quando defendi a minha dissertação de mestrado, o meu carro foi pichado com dizeres “Sua loira f.da p; o mérito é burrice, e você é a maior prova disso”.
Estamos todos imbuídos das melhores intenções. Queremos uma nação justa e solidária. No entanto, experiências de direito comparado mostram que a implementação das raças como critério para distribuição de direitos gera mais perdas do que ganhos. O exemplo de Ruanda é estarrecedor. De 1933 até o genocídio em 1994, o país, que era misturado, ambíguo no sistema de classificação, por haver sido dominado por outro país com sérios problemas de divisões étnicas — a Bélgica — terminou por adotar a rigidez imposta pelo colonizador com a criação das carteiras étnicas (até então inexistentes) e, espelhado na visão dos dominadores, cindiu-se entre Hutus e Tutsis. Um povo que tinha a mesma religião, falava a mesma língua e se considerava parte da mesma nação foi cindido em dois. Tal divisão acarretou profundo e tenebroso ódio. Os grupos que foram forjados por força de uma lógica de racismo institucionalizado, apesar de iniciado com a melhor das intenções, acabaram se transformando em personagens trágicos de uma cruel destruição. Os mortos de Ruanda se acumularam numa velocidade quase três vezes maior do que a dos judeus mortos durante o Holocausto. É isso que queremos para o Brasil? Correio Braziliense –
VOZ A SER OUVIDA
Não faz muito tempo, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em decisão liminar, considerou inconstitucional a aplicação de cotas no estado, entre elas as raciais. O governo recorreu, e conseguiu sustar o efeito da decisão para o vestibular deste ano. Espera, no julgamento do mérito, restabelecer o critério da cor na distribuição de vagas no ensino superior.
Consiga ou não, é certo que o tema, devido a suas implicações para a sociedade brasileira — miscigenada, avessa à militância racista —, terá de, mais cedo ou tarde, ser tratado no Supremo Tribunal Federal.
O assunto já tramita na Corte, por meio de dois processos, um deles sobre o Programa Universidade para Todos (ProUni). Neste, o relator, ministro Carlos Britto, foi favorável às cotas, e o julgamento terminou suspenso por um pedido de vista do ministro Joaquim Barbosa. Na semana passada, as cotas voltaram à agenda do STF, desta vez num pedido de liminar encaminhado pelo DEM para suspender a sua aplicação pela Universidade de Brasília (UnB), uma das que mais avançaram nesta prática discriminatória.
A UnB chega a manter tribunais raciais para “julgar” se o candidato é mesmo “negro”, “pardo” ou “índio”.
Há situações criadas nestes tribunais que parecem inspiradas nos supremacistas alemães da década de 30 do século passado.
O ministro Gilmar Mendes, presidente da Corte, não concedeu a liminar, pois não encontrou razão para uma medida de urgência; porém, destacou a necessidade de uma apreciação “célere” do assunto pelo STF. Uma oportunidade é o julgamento do mérito da própria ação do DEM. Ao fundamentar sua decisão, Mendes, em texto de 27 laudas, expôs com precisão críticas à cota racial, importada dos EUA, sociedade com cultura e formação histórica diversas das nossas.
O negro não entra na universidade por ser negro, mas por ser pobre, entende, com acerto, o ministro.
“Com a ampla adoção de programas de cotas raciais, como ficará, do ponto de vista do direito à igualdade, a situação do branco pobre?” — pergunta o ministro. Este é um dos pontos centrais na crítica às cotas: a discriminação contra os pobres que não sejam “negros”, “pardos” ou “índios”, num flagrante atentado ao conceito de igualdade estabelecido na Constituição. O ministro contribui, ainda, para o intenso debate do tema ao alertar sobre o risco de que, em nome do combate ao preconceito e à discriminação, se crie uma sociedade “bicolor”, dividida em dois polos antagônicos: “brancos” e “não brancos” ou “negros” e “não negros”. Parlamentares envolvidos em votações sobre o tema precisam refletir sobre a argumentação do presidente do STF. O Globo
Finalmente, determinada pessoa, um ser mais destemido, dotado de coragem inexplicável, desafia as correntes e o muro da caverna. A despeito dos gritos de terror e do desespero dos habitantes do buraco, ele consegue pôr abaixo as paredes que os impediam de enxergar a verdade. E então acontece o espanto! Onde antes havia sombras, agora se enxergam seres humanos! Libertos dos grilhões, os habitantes da caverna passaram a ser confrontados com a beleza, a natureza, a liberdade e a realidade.
O mito da caverna, narrado por Platão, é uma metáfora sobre a ignorância humana. E a ignorância, em se tratando de cotas raciais, consegue ser tão prejudicial à compreensão do tema quanto o é o racismo. Por Roberta Fragoso Menezes Kaufmann
Escrevo este artigo na condição de advogada voluntária do Partido Democratas para dizer que ganhamos. Quando o ministro Gilmar Mendes proferiu decisão, em 31.7.2009, negando parte do pedido liminar inserido na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 186, por nós ajuizada no STF, determinando a permanência, por enquanto, dos alunos matriculados pelo sistema das cotas raciais na UnB, finalmente pôs abaixo os grilhões que impediam os cérebros dos juristas de se libertar. Explico.
Um pouco antes da decisão do ministro Gilmar, foi noticiado na mídia: “O novo procurador-geral da República esclarece: o princípio da igualdade é compatível com as ações afirmativas”. Quando se escreve uma manchete como essa, o leitor desavisado é levado a compreender: “Ah, então alguém entendia que o princípio da igualdade não era compatível com a proteção das minorias”? Se existe esse alguém no Estado brasileiro não é esta advogada.
Apesar de óbvio, é importante deixar claro, especialmente para os juristas que escrevem sobre as cotas raciais: somos totalmente a favor de ações afirmativas como gênero para integração de minorias. Somos totalmente conscientes de que o modelo de Estado brasileiro é o de Estado Social, que busca promover a diminuição das desigualdades existentes por meio de uma desequiparação jurídica. Às vezes se torna essencial repisar o óbvio, pois são nessas entrelinhas, a partir de subterfúgios, que a maldade do discurso contrário se infiltra. E começam as insinuações e agressões de caráter pessoal, como se os contrários à política de cotas raciais fossem nazistas ou racistas, ou então pertencentes a uma “elite branca”.
Tais considerações se mostram necessárias para que se perceba que não é a constitucionalidade de ações afirmativas, como gênero, ou o reconhecimento de que existe preconceito, racismo e discriminação no Brasil o que está em jogo na ADPF. Discute-se se a implementação de um Estado racializado, ou se o racismo Institucionalizado, nos moldes em que praticado nos EUA, em Ruanda e na África do Sul — onde os direitos foram distribuídos com base na raça — é a medida mais adequada para a construção de uma sociedade mais justa, igual e solidária.
No Brasil, ninguém é excluído pelo fato de ser negro. Aqui, a dificuldade de acesso à educação decorre da precária situação econômica, que termina por influir em uma qualificação profissional deficiente, independentemente da cor da pele. Infelizmente, no Brasil, os negros são as maiores vítimas da desigualdade social: dados do Pnad/IBGE (2001) demonstram que aproximadamente 70% dos pobres são negros. Desse modo, se não é a cor da pele o que impede as pessoas de chegar às universidades, mas a péssima qualidade das escolas a que os pobres brasileiros, sejam brancos, pretos ou pardos, são obrigados a frequentar, cotas raciais não fazem qualquer sentido!
Sou egressa da UnB e testemunha do que vem acontecendo. Desde a implementação das cotas raciais, paulatinamente, a instituição vem sendo tomada por um ódio racial doentio. Atualmente, pode-se afirmar que não há qualquer espaço para liberdade de expressão. Ninguém pode falar uma palavra contrária às cotas sem ser interrompido por vaias fervorosas (incitadas, pasmem, por professores da própria universidade) e ameaças declaradas e ostensivas. São essas as consequências evidentes do modelo de Estado racializado: o ódio irracional. Quando defendi a minha dissertação de mestrado, o meu carro foi pichado com dizeres “Sua loira f.da p; o mérito é burrice, e você é a maior prova disso”.
Estamos todos imbuídos das melhores intenções. Queremos uma nação justa e solidária. No entanto, experiências de direito comparado mostram que a implementação das raças como critério para distribuição de direitos gera mais perdas do que ganhos. O exemplo de Ruanda é estarrecedor. De 1933 até o genocídio em 1994, o país, que era misturado, ambíguo no sistema de classificação, por haver sido dominado por outro país com sérios problemas de divisões étnicas — a Bélgica — terminou por adotar a rigidez imposta pelo colonizador com a criação das carteiras étnicas (até então inexistentes) e, espelhado na visão dos dominadores, cindiu-se entre Hutus e Tutsis. Um povo que tinha a mesma religião, falava a mesma língua e se considerava parte da mesma nação foi cindido em dois. Tal divisão acarretou profundo e tenebroso ódio. Os grupos que foram forjados por força de uma lógica de racismo institucionalizado, apesar de iniciado com a melhor das intenções, acabaram se transformando em personagens trágicos de uma cruel destruição. Os mortos de Ruanda se acumularam numa velocidade quase três vezes maior do que a dos judeus mortos durante o Holocausto. É isso que queremos para o Brasil? Correio Braziliense –
VOZ A SER OUVIDA
Não faz muito tempo, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em decisão liminar, considerou inconstitucional a aplicação de cotas no estado, entre elas as raciais. O governo recorreu, e conseguiu sustar o efeito da decisão para o vestibular deste ano. Espera, no julgamento do mérito, restabelecer o critério da cor na distribuição de vagas no ensino superior.
Consiga ou não, é certo que o tema, devido a suas implicações para a sociedade brasileira — miscigenada, avessa à militância racista —, terá de, mais cedo ou tarde, ser tratado no Supremo Tribunal Federal.
O assunto já tramita na Corte, por meio de dois processos, um deles sobre o Programa Universidade para Todos (ProUni). Neste, o relator, ministro Carlos Britto, foi favorável às cotas, e o julgamento terminou suspenso por um pedido de vista do ministro Joaquim Barbosa. Na semana passada, as cotas voltaram à agenda do STF, desta vez num pedido de liminar encaminhado pelo DEM para suspender a sua aplicação pela Universidade de Brasília (UnB), uma das que mais avançaram nesta prática discriminatória.
A UnB chega a manter tribunais raciais para “julgar” se o candidato é mesmo “negro”, “pardo” ou “índio”.
Há situações criadas nestes tribunais que parecem inspiradas nos supremacistas alemães da década de 30 do século passado.
O ministro Gilmar Mendes, presidente da Corte, não concedeu a liminar, pois não encontrou razão para uma medida de urgência; porém, destacou a necessidade de uma apreciação “célere” do assunto pelo STF. Uma oportunidade é o julgamento do mérito da própria ação do DEM. Ao fundamentar sua decisão, Mendes, em texto de 27 laudas, expôs com precisão críticas à cota racial, importada dos EUA, sociedade com cultura e formação histórica diversas das nossas.
O negro não entra na universidade por ser negro, mas por ser pobre, entende, com acerto, o ministro.
“Com a ampla adoção de programas de cotas raciais, como ficará, do ponto de vista do direito à igualdade, a situação do branco pobre?” — pergunta o ministro. Este é um dos pontos centrais na crítica às cotas: a discriminação contra os pobres que não sejam “negros”, “pardos” ou “índios”, num flagrante atentado ao conceito de igualdade estabelecido na Constituição. O ministro contribui, ainda, para o intenso debate do tema ao alertar sobre o risco de que, em nome do combate ao preconceito e à discriminação, se crie uma sociedade “bicolor”, dividida em dois polos antagônicos: “brancos” e “não brancos” ou “negros” e “não negros”. Parlamentares envolvidos em votações sobre o tema precisam refletir sobre a argumentação do presidente do STF. O Globo
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