Cerco à liberdade

Viceja na América Latina uma fórmula maquiavélica que utiliza instrumentos democráticos para legitimar o autoritarismo demagógico e a hipertrofia do Executivo. O paradigma é a Venezuela de Hugo Chávez, caudilho há dez anos no poder e que lá ficará enquanto o “povo” venezuelano permitir, pois cuidou de garantir “democraticamente” — via referendo — a reeleição indefinida, jogando no lixo a alternância.

Além de Cuba, Chávez tem aliados fiéis nos governos de Bolívia, Equador e Nicarágua.

O modelo é incompatível com a liberdade de imprensa. O venezuelano é o que mais longe foi na repressão à mídia, já tendo fechado uma grande rede de TV e mais de 30 emissoras de rádio. Este mês, abriu o sexto processo contra a rede Globovisión, ameaçada de fechamento. Editorial O Globo

No Equador, o presidente Rafael Correa deverá enviar ao Congresso um projeto para regular o conteúdo dos meios de comunicação.

Mês passado ele pediu o fechamento da TV Teleamazonas. Na Bolívia e na Nicarágua, Evo Morales e Daniel Ortega rezam pela mesma cartilha. O sufocamento da liberdade de imprensa no continente se estende, de forma também lamentável, à Argentina.

Desde o mandato de Néstor Kirchner, a Casa Rosada é acusada de manipular a verba de publicidade oficial para cooptar veículos e punir os críticos, independentes. No governo de sua mulher Cristina Kirchner, a pressão se acirrou.

O principal alvo é o grupo Clarín, que acaba de viver uma situação kafkaniana: um número estimado entre 150 e 200 fiscais da Receita Federal argentina deu uma inédita batida na sede da empresa, que o governo argentino alegou não ter sido autorizada. Mas, ao mesmo tempo, a Casa Rosada apressa a tramitação de um projeto que regula o setor de rádio e televisão — concebido para atingir diretamente o grupo Clarín.

O Brasil tem sido vítima de outra forma de restrição à atuação da imprensa.

São decisões de instâncias iniciais da Justiça, chamadas a opinar pelos supostos prejudicados, e que na prática constituem uma forma de censura, logo, um ato inconstitucional.

“O Estado de S. Paulo”, por exemplo, foi obrigado a suspender a cobertura da operação Boi Barrica, da PF, que investiga uma teia de malfeitorias na família do presidente do Senado, José Sarney.

Enquanto não houver nova decisão judicial, o jornal paulista continuará sob censura. E é surpreendente a demora no desfecho do caso. Não importa se o agente da coerção é o arbítrio chavista, os fiscais de Kirchner ou togas brasileiras. Há um cerco continental à liberdade de imprensa.

Sem ela, outras são mais facilmente suprimidas.O Globo


BUENOS AIRES OU CARACAS?
Nunca, como ontem, Buenos Aires se pareceu tanto com Caracas, nem os Kirchner foram tão semelhantes a Hugo Chávez. Quando mais de 200 inspetores da Afip se aglomeraram na porta do Grupo Clarín, as imagens lembravam nitidamente o ataque de grupos chavistas à Globovisión, a única cadeia privada de televisão que restou na Venezuela, nos primeiros dias de agosto último. Era a perversão de qualquer sentido normal de “Estado”: a operação se deu em meio a uma guerra pessoal deflagrada nas últimas semanas pelo expresidente Néstor Kirchner contra esse grupo jornalístico.

Já não importa contra quem está lutando o caudilho do governo. É a existência do jornalismo argentino que está em jogo, uma vez que ele decidiu usar recursos do Estado com outros fins. Qual, senão esta, foi a lógica das ditaduras militares tão condenadas pelo casal presidencial? Na Venezuela, Chávez primeiro cassou a licença do maior e mais antigo canal de televisão, Radio Caracas Televisión, e agora está empreendendo contra o único canal privado e independente que resta em seu país, Globovisión. O que ele quer é o silêncio do jornalismo em geral, e não só ganhar uma batalha em particular. Kirchner está fazendo aqui o mesmo? Pode um órgão estatal mobilizar 200 funcionários sem a autorização expressa de seu chefe? Pode fazê-lo quando se trata de uma blitz num meio de comunicação, sempre mais sensível que qualquer outra empresa a inspeções-surpresa do Estado? Pode, por último, enviar inspetores a um jornal quando há rixas contra o mesmo jornal? Tudo foi estranho demais. Um veículo jornalístico pode ser inspecionado — como não? — , mas só quando há razões suficientes para fazê-lo e o processo está nas mãos de juízes independentes, quando já não resta, enfim, outra alternativa. Nenhuma dessas condições foi atendida no caso que ocorreu ontem nas dependências do “Clarín”.

“A ordem veio de Néstor Kirchner”, disparou ontem, mal-humorado, um alto funcionário do governo.

“Perguntem a Kirchner”, tinha sido, mais cedo, a resposta dos inspetores da Afip quando empregados do “Clarín” lhes perguntaram o que estavam buscando. Kirchner deu a ordem, de fato, embora nunca se vá saber se para isso usou Echegaray ou passou por cima de Echegaray.

Duzentos empregados de Echegaray teriam se mobilizado sem a autorização de Echegaray. A Afip, um órgão-chave do Estado, agiu em nome dos Kirchner sem o conhecimento da presidente. É possível tal deformação do Estado e do governo, em que mandaria só um homem sem cargo ou funções? Quase impossível de crer. O que aconteceu ontem só foi possível porque antes o governo agiu como militante de uma causa contra os meios jornalísticos em geral, e hoje contra o “Clarín” em particular. Nenhum dos Kirchner é inocente.

O chamado progressismo latinoamericano está fazendo o mesmo que faziam com a imprensa as ditaduras militares de três décadas atrás. Venezuela, Argentina, Equador, Bolívia e Nicarágua têm governos eleitos democraticamente, mas estão perdendo essa condição no exercício do poder. Na terça-feira, o jornal “El País”, de Madri, dedicou um duro editorial a essa tendência latino-americana de destruir as liberdades em nome de supostos interesses populares, em que incluiu os Kirchner. Convém reproduzir um de seus parágrafos: “O último passo dos regimes populistas latinoamericanos é acomodar a lei a seus interesses e acabar com a liberdade de expressão”.

Acomodar a lei, de fato, mas também, como vimos ontem, apropriarse dos recursos do Estado para satisfazer aos que mandam em uma democracia cada vez mais debilitada

JOAQUÍN MORALES SOLÁ é colunista do “La Nacion”, do Grupo de Diários América (GDA) Joaquín Morales Solá Do La Nacion-via O Globo

Um comentário:

Viorel Iraşcu disse...

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