NINGUÉM SE ILUDAO Estado forte do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, assunto de mais uma de suas arengas, na posse do novo ministro de Assuntos Estratégicos, não se confunde com a ordem política legal e impessoal típica da modernidade. Lula não distingue entre Estado e governo, não separa governo de partido, e seu partido se reduz cada vez mais à sua pessoa. Não há outra maneira de explicar seus surtos cada vez mais frequentes de autoconsagração como instância suprema de todos os poderes - censor do Tribunal de Contas, limpador das teias de aranha da Constituição, zelador do pré-sal, comandante da Petrobrás, orientador da Vale, censor da Embraer e autor de todas as mudanças importantes na história do Brasil moderno. Sem contar, é claro, seus conselhos a Barack Obama, sua indisfarçável intervenção nos assuntos internos de Honduras e sua cobrança de explicações ao presidente Álvaro Uribe sobre uma decisão soberana da Colômbia. Por Rolf Kuntz*
A inegável inépcia do governo explica, sem dúvida, boa parte de seu fracasso na execução do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e, de modo geral, o insucesso de seus programas de investimento, com desembolsos sempre muito abaixo dos valores orçados. Mas a incompetência, é preciso repetir, é apenas uma das causas dos tropeços. Outro fator, não menos importante, é a incapacidade de Lula e de seus auxiliares de aceitar instituições fundadas em regras impessoais e superiores ao arbítrio de um presidente da República.
Essa incapacidade se revela mais uma vez nos projetos sobre exploração do pré-sal. Há pelo menos cinco dispositivos inconstitucionais nesses projetos, segundo a Consultoria Legislativa do Senado. Os cinco pontos foram enumerados em reportagem publicada ontem no Estado (página B10).
Juristas podem ter opiniões divergentes sobre o assunto e não faltará quem se disponha a defender a posição do governo. Mas para isso será preciso algum malabarismo. Pesquisa e lavra de recursos minerais "somente poderão ser efetuadas mediante autorização ou concessão da União", segundo o parágrafo 1º do artigo 176 da Constituição. Será preciso anular o advérbio "somente", ou interpretá-lo de modo muito inovador, para justificar a criação do contrato de partilha por meio de lei. Este é só um exemplo dos problemas apontados pela consultoria. Todos são facilmente visíveis, mesmo para o não especialista em direito constitucional. Ninguém, na assessoria do Executivo, terá notado esses pontos vulneráveis?
O aparente desleixo fica mais notável quando se considera o tempo gasto na elaboração dos projetos. O trabalho durou mais de um ano e as propostas foram discutidas em vários encontros pela cúpula do governo. Um dos conselheiros do presidente para assuntos legais era o seu candidato à primeira vaga no Supremo Tribunal Federal. Seu saber supostamente notório, uma das condições para a aprovação de seu nome, talvez tenha sido subutilizado nesse trabalho.
Apesar da advertência da Consultoria Legislativa, talvez os congressistas acabem aprovando os projetos com poucas modificações e vários pontos duvidosos quanto à sua constitucionalidade. Qualquer previsão é insegura, neste momento, mas o desempenho recente dos congressistas autoriza todas as dúvidas. Este é um detalhe importante, porque as vocações autoritárias prosperam muito mais facilmente quando falha a resistência de quem representa as instituições.
Um governo preocupado com os meandros da lei teria produzido projetos muito mais cuidadosos para a regulação das operações do pré-sal. Seu desleixo recende a desprezo, tanto quanto a escancarada campanha eleitoral nas margens do São Francisco, as críticas ao Tribunal de Contas da União (TCU) e as tentativas de comandar as maiores empresas do País, sem distinguir sua condição privada ou estatal e sem respeitar os acionistas.
O TCU apenas cumpre as funções de controle prescritas pela Constituição de 1988, disse o seu presidente, Ubiratan Aguiar, discursando diante de Lula - um dos constituintes, segundo lembrou. Lula de fato assinou a Constituição, mas naquele tempo ele não era o mandachuva e ainda não se apresentava como o fundador do Brasil moderno, progressista, soberano, justo e destinado a iluminar - com as luzes de seu grande líder, é claro - o caminho da nova ordem mundial. Quem mais poderia fazê-lo? Este é o cara, disse Obama. O Rei Sol teria morrido de inveja. Opinião do O Estado de S. Paulo - Rolf Kuntz é jornalista
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