Um alerta contra o "vale-tudo"

A Justiça Eleitoral está diante da obrigação de dizer se de algo terão servido as advertências do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Gilmar Mendes, sobre o imperativo de ela tomar posição em face do que chamou "esse tipo de vale-tudo", a acintosa campanha do Lula em favor de sua candidata à sucessão, a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, não só muito antes do prazo permitido, mas também com o uso - e abuso - da máquina federal e com dinheiro público. Na semana passada, numa operação especialmente montada para fazê-la compartilhar de sua popularidade no Nordeste, o seu reduto por excelência, Lula percorreu em 3 dias 11 cidades do norte de Minas, Bahia, Pernambuco e Ceará a pretexto de "fiscalizar" as obras de transposição do Rio São Francisco. Editorial do Estadão

O presidente subiu ao palanque, admitiu que fazia comício, deu uma entrevista depois da outra, disse que a sucessão deveria ser idealmente um embate entre "nós e eles", comentou que Dilma e o outro aspirante a candidato governista, deputado Ciro Gomes, também participante da caravana, "têm vocação para serem cantores solo" e fez ironia com o presidenciável tucano José Serra. Falou o que quis, porque quis, quando quis. Com a sem-cerimônia de costume, nem se preocupou em disfarçar o caráter político-eleitoral da viagem em que se vangloriou sem cessar de ter posto em marcha "uma das maiores obras do mundo". Além disso, houve sorteio de casas, comilança e cantoria. "Nem o mais cândido dos ingênuos acredita que isso é uma fiscalização de obras", apontou Gilmar Mendes.

Ele se guardou de julgar se "apresentar alguém como candidato em atividades de governo é compatível com a Constituição". Mas não deixou dúvida sobre a sua convicção de que a Justiça Eleitoral tem de discutir a questão, respondendo, por exemplo, se é lícito "transformar um evento rotineiro de governar em um comício". Exortou a Procuradoria-Geral Eleitoral e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a comparar "como se fiscalizava obra antes, como se está a fiscalizar agora". O ministro não ignora que todo governo tem uma vantagem de partida sobre a oposição - "mais-valia natural", nas suas palavras - em matéria de exposição de seus candidatos. Mas caberia às leis e aos tribunais, por isso mesmo, defender a igualdade de oportunidades eleitorais, coibindo os abusos dos poderosos de turno.

Nesse ponto, o País está malservido. A legislação eleitoral e a jurisprudência focalizam apenas as condutas dos candidatos e autoridades a partir do início oficial das campanhas. "Em ano pré-eleitoral", diz o presidente do TSE, ministro Carlos Ayres Britto, "é muito difícil separar o que é ação de governo e o que é propaganda eleitoral antecipada." Para ele, "considera-se que ninguém está pedindo voto porque não há candidato formal". O argumento desconsidera que Dilma é a candidata notória do presidente e que, desde o ano passado, ele trabalha ostensivamente para promovê-la. Há formas e formas de pedir votos para alguém. Em fevereiro, Lula aproveitou a realização, em Brasília, de um Encontro Nacional de Prefeitos para cobrir Dilma de elogios.

A oposição acionou o TSE - e perdeu. "Não há provas de que o evento tenha tido finalidade de cunho eleitoral", entendeu o relator do caso, Arnaldo Versiani, apoiado pela unanimidade dos seus pares. Recentemente, a oposição foi de novo derrotada, também por falta de provas, ao recorrer contra o programa eleitoral do PT que apresentou Dilma em contexto "triunfal". O ministro Britto diz que os pedidos eram inconsistentes e insuficientemente documentados. Anteontem uma nova representação - a sexta do gênero - deu entrada no TSE, agora para condenar o presidente e a ministra pelo uso do poder político e recursos públicos na caravana eleitoral às margens do São Francisco. Fica difícil imaginar que outras provas, além das irrefutáveis evidências trazidas pelo noticiário, a Justiça precisa desta vez para reconhecer o ilícito cuidadosamente planejado.

Se não o fizer, estará dando carta branca para o presidente reincidir no abuso, porque não será o senso ético que o deterá. "O governo Lula", diz o ministro Gilmar Mendes, "testa os limites de tolerância da Justiça Eleitoral." Resta esperar que sejam menos amplos do que o retrospecto sugere.

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