O país do calote

Ao abraçar a PEC dos Precatórios, magistrados e parlamentares contribuem para reforçar a percepção de que, no Brasil, há dois pesos e duas medidas. De que a balança do Judiciário costuma pender para o lado mais forte. E de que no Legislativo só lobbies fortes e articulados têm vez

Estados e municípios devem pelo menos R$ 100 bilhões em precatórios já vencidos. Não negam a fatura, comparada a oito orçamentos anuais do Bolsa Família, mas também não pagam. A situação é de “calote oficial”, conforme expressão cunhada pelos ministros Marco Aurélio de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), e Francisco Fausto, ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST). Em vez de pressionar pelo fim da inadimplência, parte dos integrantes do Congresso e do Judiciário decidiu legitimá-la. Para tanto, lançou mão de uma proposta de emenda constitucional. Por Daniel Pereira

Já aprovada pelo Senado, a PEC avança na Câmara. Na terça-feira passada, recebeu o aval de uma comissão especial da Casa e agora está a um passo do plenário. Ao feitio de governadores e prefeitos, o texto desobriga o poder público de pagar imediatamente, como determina a Constituição, os débitos pendentes. Em substituição, diz que estados e municípios destinarão até 2% de suas receitas correntes líquidas para saldar os precatórios vencidos. Do dinheiro reservado, metade será usada em leilões, nos quais serão agraciados os credores que concederem os maiores deságios.

É isso mesmo. Além de liquidar a conta com atraso, os governantes exigem descontos. Caso contrário, não há jogo. Como reza o dito popular, “devo, não nego, pago quando (e como) puder”. A proposta foi idealizada, em termos um pouco diferentes dos atuais, pelo ex-presidente do STF Nelson Jobim, atual ministro da Defesa. Voto vencedor no julgamento do Supremo que livrou o poder público de punição por conta do “calote oficial”, Jobim alegou ser necessário criar um modelo que levasse em consideração a capacidade financeira de estados e municípios para honrar seus compromissos. Ou seja, de lhes dar o direito de quitar as faturas dentro de suas possibilidades financeiras.

Tratamento desigual

O argumento de Jobim é pertinente. Pragmático. Mas não a ponto de tornar secundárias as outras preocupações à mesa. Caso do próprio respeito ao Judiciário. Precatórios são dívidas decorrentes de sentenças definitivas ou “transitadas em julgado”. E decisão judicial se cumpre, sob risco de punição ou de desmoralização de um dos três poderes constituídos. No caso dos precatórios, optou-se pelo segundo caminho. Há ainda o aspecto amargo da diferença de tratamento. O cidadão comum, quando cobrado pelo Estado, não tem escapatória. Paga ou se depara com o rigor da lei.

Empregado ou não, em situação financeira confortável ou com a corda no pescoço, não tem o direito de destinar só 2% de seu salário líquido para acertar as contas, por exemplo, com o Fisco. Pior: às vezes, é penalizado até quando está em dia com suas obrigações. A decisão do governo de adiar a restituição do Imposto de Renda (IR), devido à queda na arrecadação federal, é um exemplo disso. Num país em que milhares de trabalhadores morreram com precatórios nas mãos — à espera do recebimento de direitos como salários e aposentadorias — e outros negociaram seus papéis por até 20% do valor de face no chamado mercado negro, é saudável a disposição do Congresso de abordar a questão.

Resta, agora, impedir que o resultado da votação, como em projetos recentes, desconsidere o interesse de todas as partes envolvidas. Ao abraçar o relatório atual da PEC dos Precatórios, magistrados e parlamentares contribuem para reforçar a percepção de que, no Brasil, há dois pesos e duas medidas. De que a balança do Judiciário costuma pender para o lado mais forte. E de que no Legislativo só lobbies fortes e articulados têm vez, como os de governadores e prefeitos. Nas Entrelinhas – Correio Braziliense

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