O gol contra de Lula

O presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, que deixou ontem Brasília, é o mesmo que ali desembarcou 24 horas antes. Em nenhuma fala pública, em nenhum documento assinado, ele emitiu algum sinal, por tênue que fosse, que o seu anfitrião Lula da Silva poderia invocar como evidência do acerto de tê-lo convidado. O presidente brasileiro quer passar ao mundo a imagem de grande promotor do diálogo como instrumento insubstituível para a solução de conflitos locais, regionais ou globais. O Brasil, nessa perspectiva, já teria adquirido estatura, prestígio e respeito para se credenciar a esse papel ? e exercê-lo com êxito. Não está claro onde isso teria acontecido, salvo, quem sabe, no Haiti. Mas o ponto da megalômana diplomacia lulista, para justificar a acolhida a uma figura que disputa com Robert Mugabe, o eterno ditador do Zimbábue, o título de mais execrado governante do planeta, é que o País deve confraternizar com qualquer regime que faça praça de prestigiar o Brasil.

Faltou combinar com Ahmadinejad. Ele não concedeu nada. Ganhou, a custo zero, o reconhecimento que veio buscar. O melhor que fez foi não proferir uma enormidade que acentuasse a sua condição de pária perante o concerto das nações e que, pior do que isso para o Brasil, respingasse em Lula, sob os holofotes da imprensa estrangeira. O presidente brasileiro, em todo caso, tratou de se resguardar. A anos-luz do Lula que em junho reduziu a um mero "protesto de quem perdeu" as manifestações sem precedentes na República Islâmica contra a maciça fraude eleitoral que manteve Ahmadinejad no poder, desta vez ele disse que "a política externa brasileira é balizada pelo compromisso com a democracia e o respeito à diversidade". Diante do impassível chefe do governo que executou pelo menos 115 participantes das passeatas em Teerã, sem falar nas prisões e torturas em massa, Lula foi inequívoco.

"Defendemos os direitos humanos e a liberdade de escolha", ressaltou, "com a mesma ênfase com que repudiamos todo ato de intolerância ou de recurso ao terrorismo" ? o Irã, como se sabe, banca o Hezbollah no Líbano e o Hamas em Gaza. Teria sido perfeito se lembrasse ao sonegador do Holocausto que o Brasil repudia também o desrespeito às verdades históricas. Mas defendeu a criação de um Estado palestino "ao lado de um Estado de Israel (que Ahmadinejad considera um "tumor") seguro e soberano". Tergiversou, porém, ao abordar o ponto nevrálgico do contencioso da comunidade internacional com o Irã ? o seu programa nuclear. Embora instasse o interlocutor a trabalhar com os países interessados em "encontrar uma solução justa e equilibrada para a questão", tropeçou no modo pelo qual justificou "o direito do Irã de desenvolver um programa nuclear com fins pacíficos".

"É simples", alegou. "Aquilo que defendemos para nós defendemos para os outros." Brasil e Irã são signatários do Tratado de Não-Proliferação de Armas Atômicas (TNP) e integram a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), que fiscaliza as atividades dos países-membros. A partir daí, a equivalência não se sustenta. O Brasil, ao contrário do Irã, nunca mentiu aos inspetores internacionais sobre as suas atividades no setor, nunca ocultou as suas instalações e centros de pesquisas nucleares ? e nunca foi alvo de sanções econômicas do Conselho de Segurança das Nações Unidas por transgredir repetidamente as normas internacionais nessa matéria. Decerto existem "bombistas" no País, mas o mundo não desconfia das intenções brasileiras. Já a credibilidade do Irã é nula ? e a contorcida versão apresentada por Ahmadinejad em Brasília para explicar a recusa da proposta que permitiria a Teerã enriquecer seu urânio no exterior apenas comprova que o Irã age de má-fé, para ganhar tempo e dificultar a adoção de novas punições.

Não há a menor razão para crer que isso mudará por causa das exortações do "bom amigo" Lula, que corre o risco de ver desmoralizada a sua pretensão de atuar como moderador entre o Irã e os países com os quais finge negociar. As fantasias triunfais do Planalto sobre a sua capacidade de influir nas grandes questões mundiais ? que incluem o desmedido projeto de intermediar o conflito israelense-palestino ? levaram o presidente a abrir os braços a Ahmadinejad. Mais do que uma iniciativa fútil, foi um revés autoinfligido. Como diria Lula, um gol contra. Editorial O Estado de S. Paulo

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