Populista apocalíptico

O presidente do Irã, que chega amanhã a Brasília, cultua a origem pobre e acredita que o dia do Juízo Final está próximo

Em casa de metalúrgico, um filho de ferreiro não há de se sentir estranho, nem mesmo na primeira visita. Mahmud Ahmadinejad, o sexto presidente da República Islâmica do Irã, chega amanhã a Brasília para uma visita de Estado tão breve quanto significativa, a primeira trocada entre os dois países em mais de 100 anos de relações. Ahmadinejad ficará em Brasília por menos de 24 horas, mas sua trajetória autoriza a supor que não lhe faltará tempo para colecionar afinidades com o anfitrião, a quem ele já se refere como “amigo e companheiro”, embora tenham se encontrado apenas de passagem, um par de vezes. Por Silvio Queiroz

O discutido chefe de Estado iraniano se identifica sobremaneira com Lula, o torneiro mecânico que virou presidente. É um pouco como ele próprio se enxerga, nascido há 53 anos na zona rural da província de Semnan. Garmsar, próxima a Aradan, é um povoado com tradição na manufatura de tapetes, ofício que emprestou ao hoje presidente o sobrenome original, trocado pelo pai quando o quarto e mais ilustre de seus sete filhos tinha apenas quatro anos. Saburjian é como são chamados em farsi aqueles que tingem os fios que os tapeceiros trançarão em suas obras. Ahmad, o chefe da família, não queria carregar a marca da origem social — interiorana e subalterna — na mudança para Teerã. Chegou à capital rebatizado como Ahmadinejad, que significa “da estirpe de Ahmad”.

O nome se refere também ao profeta Mohammed, ou Maomé. A mãe de Mahmud Ahmadinejad, Khanom, era uma seyyede, título atribuído no mundo islâmico àqueles que se reivindicam descendentes do profeta. E foi temperando as doses de orgulho social e de religiosidade popular que o jovem se criou na cidade grande. Em 1976, aos 20 anos, ele classificou-se no exame de admissão à universidade como 132º colocado entre 400 mil inscritos. Escolheu cursar engenharia na Universidade de Ciência e Tecnologia, e foi como estudante que aderiu de corpo e alma ao fervor revolucionário inspirado na virada da década pelo aiatolá Ruhollah Khomeini.

Ahmadinejad aderiu à Revolução Islâmica de fevereiro de 1979, precisamente o período em que o colega Lula liderava os metalúrgicos do ABC paulista em uma das históricas greves que ajudaram a enterrar o regime militar e a lançar o sindicalista na arena política. É curioso que o presidente iraniano abrace hoje um discurso no mínimo “anticapitalista”, recheado de menções à redenção do trabalho diante do capital. O flerte com o marxismo, a despeito da matriz filosófica materialista, é um traço que aproxima o xiismo iraniano — ao menos algumas vertentes — da Teologia da Libertação latino-americana. Aí reside também uma porção substancial das afinidades entre o presidente iraniano e seu colega Hugo Chávez: “socialista”, “revolucionário” e “amigo do povo” são expressões que frequentam o discurso político de ambos.

Diferentemente do pai, o jovem Mahmud aprendeu a cultivar um forte sentido de pertinência às raízes rurais e humildes, fez delas precioso capital político quando decidiu lançar-se à carreira política em Teerã, no início desta década. Ele carregava uma larga folha de serviços prestados à Revolução Islâmica, desde o alistamento voluntário na milícia Basij logo após a invasão do país pelo Iraque de Saddam Hussein, em 1980. Nos oito anos de guerra, Ahmadinejad serviu como governador em regiões, mas também construiu vínculos com o estamento militar, cuja importância na estrutura do regime só fez crescer desde então. Foi veterano também da Guarda Revolucionária, a elite das forças armadas, e recrutou meninos para pelotões suicidas lançados contra as tropas iraquianas.

Crendice
O martírio, com suas recompensas celestiais na vida pós-morte, é um dos conceitos do xiismo que produzem manifestações extremas na religiosidade popular em que Ahmadinejad foi iniciado. Há outro ingrediente que se tornou central na concepção de mundo desse político que acompanha o moralismo dos líderes religiosos mais conservadores, mas ao mesmo tempo identifica-se com um culto apocalíptico que os aiatolás e sábios consideram quase herético. São devotos da crença de que se aproxima o retorno do 12º imã (guia) xiita, o Mahdi, descendente de Maomé e seu genro, Ali. O Mahdi, desaparecido no século 9, aos cinco anos, é conhecido também como “imã oculto”, destinado a reaparecer para o Juízo Final. Ahmadinejad causou repulsa e certo constrangimento entre os hierarcas religiosos, em especial o líder supremo do país, o aiatolá Ali Khamenei, aliado e protetor do presidente, quando levou seu programa de governo para lançá-lo em um poço onde fiéis depositam seus pedidos para o 12º imã e rezam para “apressar” o seu retorno.

Mas Ahmadinejad parece seguir um dito popular islâmico que recomenda: “Confie em Deus, mas amarre o seu camelo”. Foi com uma sólida formação técnica, com doutorado em engenharia de tráfego pela Universidade de Ciência e Tecnologia e uma breve carreira como professor, que ele se elegeu prefeito da capital, em 2003, após a vitória da legenda conservadora Aliança dos Construtores do Irã Islâmico no legislativo municipal. Em dois anos de mandato, anulou boa parte das medidas adotadas por seus antecessores reformistas para liberalizar os costumes. Intensificou a fiscalização do estrito código de vestimenta imposto às mulheres, a repressão a casais de namorados e às festas nos subúrbios ricos do norte, onde jovens driblavam a proibição de consumir álcool e de dançar em pares de homens com mulheres — um tabu absoluto em situações públicas.

Dois anos bastaram para cultivar a fama de administrador, reconhecida com a escolha como finalista do prêmio “melhor prefeito do mundo”, em 2005, entre 550 inscritos. Cotado para a lista dos 10 mais, só não foi adiante porque se elegeu presidente, derrotando no segundo turno, por larga margem, o favorito ex-presidente Hashemi Rafsanjani. Este, por sinal, tornou-se adversário e desafeto, mas foi novamente derrotado na polêmica eleição de junho passado, quando apoiou o reformista Mir Hossein Moussavi contra a reeleição de Ahmadinejad. A oposição alegou fraude, saiu às ruas em massa e colocou o regime diante de seu maior desafio em três décadas, mas a mão pesada do aiatolá Khamenei fez sufocar os protestos sob a repressão dos milicianos e da Guarda Revolucionária.

Mais do que nunca, no segundo mandato Mahmud Ahmadinejad incorpora a aliança entre a ala mais conservadora do clero e a elite militar, a cada ano mais poderosa.

“Eles (os países ocidentais) devem esperar uma nova onda de pensamento revolucionário da nação iraniana em seu caminho, e nós não permitiremos que os arrogantes tenham nem sequer uma noite de sono tranquilo”

Quem é ele
- Nome: Mahmud Ahmadinejad
- Nascimento: 28/10/1956, em Garmsar, na província de Semnan
- Origem familiar: quarto dos sete filhos do ferreiro Ahmad Saburjian (sobrenome depois alterado para Ahmadinejad)
- Situação civil: casado, com dois filhos e uma filha
- Formação profissional: engenheiro pela Universidade de Ciência e Tecnologia, com doutorado em engenharia de tráfego e planejamento de transportes
- Carreira política: governador de diversas regiões nos anos 1980 e governador-geral da província de Ardabil de 1993 até 1997, quando foi afastado pelo recém-eleito presidente Mohammad Khatami
- Filiação política: pertence ao grupo conservador Aliança dos Construtores do Irã Islâmico - Correio Braziliense

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