Romênia vive sob 'amnésia coletiva'

Sem investigação, crimes de um dos mais violentos regimes da Cortina de Ferro começam a prescrever

Vinte anos após a queda do comunismo no Leste Europeu, as tentativas de apuração dos crimes cometidos ao longo de quatro décadas pelos regimes comunistas da Cortina de Ferro ainda enfrentam resistência. Nenhum país fez essa investigação ou abriu processos contra responsáveis por crimes durante o período. Parte da explicação, segundo analistas, é que muitos dos ex-integrantes de governos controlados pelo Partido Comunista (PC) local ainda estão no poder, agora ligados a outras siglas. Por Jamil Chade, Transilvânia, Romênia

No Instituto de Investigação dos Crimes do Comunismo (IICC), em Bucareste, a estimativa inicial é de que 10 mil pessoas morreram durante os 24 anos (1965-1989) da ditadura de Nicolae Ceausescu na Romênia, provavelmente a mais violenta de toda a Cortina de Ferro. No dia de seu julgamento, em 25 de dezembro de 1989, a corte o acusou de 60 mil mortes. Ceausescu foi condenado e fuzilado com a mulher, Elena.

Sem apoio do governo, a sociedade civil tomou a iniciativa de escavar locais em busca de ossadas de vítimas do regime, com a ajuda de jovens procuradores. Apoiado pelos partidos de direita e embaixadas como da Grã-Bretanha, Alemanha e EUA, o IICC decidiu por conta própria fazer o que o governo romeno nunca fez: investigar e procurar corpos de vítimas do regime.

Foi com esse objetivo que o padre Muresan Petru entrou em contato com o instituto com informações sobre a morte, em 5 de outubro de 1949, de um tio-avô. Trata-se de Simion Muresan, executado pelo serviço secreto por ter abrigado três membros da resistência nos primeiros anos da divisão da Europa.

Na semana passada, o Estado acompanhou a busca pelo corpo, na região da Transilvânia. Simion tinha 74 anos quando foi baleado na cabeça e enterrado em um local perto de seu vilarejo, no noroeste da Romênia. "A partir de uma pesquisa e com a ajuda de médicos legistas, conseguimos encontrar a ossada", explicou Cosmin Budeanca, diretor do Departamento de Memória do instituto. Em dois anos de trabalho, cerca de 20 corpos foram encontrados. O número é insignificante em comparação ao total de vítimas. Mas, para os romenos, tem um significado profundo: desenterrar o passado e iniciar um processo de avaliação do que ocorreu. "As pessoas que mataram meu tio jamais foram processadas. Mas, pelo menos, poderemos dar um enterro digno para ele, 60 anos depois de sua morte", afirmou.

O que mais preocupa os investigadores é que os crimes começam a ser apagados da memória coletiva. Um exemplo é o caso de Pitesti, uma prisão para onde foram levadas e torturadas mais de 2 mil pessoas entre 1949 e 1952. As investigações hoje apontam que o local foi criado sob recomendação do então ditador soviético Josef Stalin para destruir a elite do país. Hoje, o prédio é a sede de uma empresa de produtos eletrônicos. Uma pesquisa com 50 vizinhos indicou que apenas 4 deles sabiam que ali funcionava um centro de tortura.

SEM RESPOSTAS
Horia Terpe, diretor executivo do Centro de Análise de Desenvolvimento Institucional (CADI), aponta que, em 1989, foi feito de tudo para apagar os crimes do regime comunista. O primeiro ato foi o de executar o casal Ceausescu horas após sua queda. "Isso foi muito conveniente para muita gente. O único processo em todo o período de transição foi contra ele e durou apenas um dia", diz o acadêmico. "Muitas perguntas ficaram sem respostas. Foi um grande erro ter matado Ceausescu."

Os únicos processados foram os generais que comandaram a tentativa de reprimir os manifestantes, em 1989. "Mas ninguém fez nada contra os responsáveis por todos os crimes anteriores de décadas", diz Terpe. Leis pós-1989 estabelecem que crimes, políticos ou não, prescrevem em 20 anos.

Liderado pelo historiador Marius Oprea, um grupo de ativistas quer a revisão da lei e incluir os crimes do comunismo na categoria de crimes contra a humanidade, sem prescrição. Mas a iniciativa tem pouco apoio no governo, formado em parte de ex-funcionários comunistas.

O governo pediu oficialmente desculpas pelos crimes da ditadura e criou uma comissão para estudar o assunto. Mas não passou disso. Terpe o acusa de ter manobrado para manter a velha elite no poder político e econômico.

A diplomata Monica Mariana Grigorescu, próxima do ex-presidente Ion Iliescu, discorda. "Iliescu não penduraria ninguém", disse. Segundo ela, o caminho era o de promover a democracia e não uma caça às bruxas.

Uma das poucas medidas foi a de abrir os arquivos da polícia secreta, a Securitate. Ela fez reaparecer os fantasmas das ditaduras, mostrando como médicos atuavam como espiões de seus pacientes, ou como vizinhos, parentes e amigos íntimos trabalhavam como informantes.

Amanhã, o ex-presidente checo Vaclav Havel conta como liderou a Revolução de Veludo em seu país. O Estado de S. Paulo

Nenhum comentário: