Obama no país da ironia perdida

Pequenas dúvidas & grandes questões


Imaginar que todos os habitantes do planeta estão do nosso lado não me parece tão diferente de ter imaginado, no início da guerra contra o Iraque que pudéssemos ser recebidos com flores quando entrás


JOAN DIDION

Durante as eleições primárias para a escolha dos candidatos à presidência, alguns de nós americanos começamos a sentir um desconforto quase clandestino com o rumo que as coisas estavam tomando. O desconforto era difícil de ser expresso porque parecia desmentir tudo o que sempre proclamamos ser oficialmente o nosso desejo.

Afinal, estava se concretizando precisamente o que almejáramos para os Estados Unidos.

Pela primeira vez na vida de quase todos nós, um dos dois grandes partidos se inclinava a indicar um candidato cuja qualificação superior podia ser comprovada. Numa nação que preza pouco a instrução, Obama era um homem inegavelmente letrado. Numa sociedade que vê com desconfiança a tolerância com o mundo exterior, Obama se afirmava como uma figura inegavelmente cosmopolita. Um homem com valores cívicos. Um homem politicamente habilidoso. O entusiasmo era forte. A participação, em espiral crescente.

No entanto, alguma coisa incomodava.

E o que incomodava nada tinha a ver com o candidato em si.

Tinha a ver, na verdade, com a reação que ele provocava.

O centro da questão estava na convicção generalizada de que só os jovens entendiam, de fato, o candidato. Um número cada vez maior de adultos plenamente capazes de ter idéias próprias passou a citar a argumentação dos filhos em defesa do candidato. Ouvia-se com frequência cada vez maior que tudo isso era um movimento geracional fora do nosso radar de compreensão.

É como se tivéssemos voltado aos nossos tempos de colégio, excluídos da companhia dos alunos mais populares da escola, sem saber por quê. O caderno Estilo, do New York Times, no domingo seguinte à eleição, informava que a camiseta da campanha de Barack Obama “faz a ironia parecer algo ultrapassado”.

A ironia estava fora de moda.

A ingenuidade, traduzida como “esperança”, era a nova tendência dominante.

A inocência, mesmo quando aparentava ser ignorância, adquiria um novo valor.

E a adesão a uma causa já podia se expressar por meio do consumismo. Perdi a conta do número de fotos que recebi por e-mail mostrando bebês com roupas e adereços de apoio a Obama.

Também perdi a conta do número de vezes que ouvi as palavras “transformação” e “inspiração”. Ou de quantas vezes ouvi os anos 60 serem evocados por quem mal sabia que o motor da revolução social daquela época não veio de bebês vestindo camisetas charmosas, mas da resistência à guerra. As nossas guerras de hoje, travadas sem a pressão do serviço militar obrigatório, ainda não conheceram uma resistência de verdade. Começou a ficar cada vez mais claro que caminhávamos para um novo contato imediato com o idealismo militante – ou seja, a conveniente, mas perigosa, redefinição de questões políticas ou pragmáticas como sendo questões morais. Digo “conveniente” porque esse tipo de redefinição torna as questões mais fáceis de serem equacionadas, e a qualifico de “perigosa” porque a nação não deveria se dar ao luxo de se contentar com respostas fáceis.

Quem se preocupava com esse estado de coisas passou a se referir com uma expressão em código àqueles que seguiam seu curso despreocupadamente, “os que bebem Kool-Aid”.

A expressão remete ao fervor militante que levou à tragédia de Jonestown, na Guiana, em 1978, quando 913 seguidores da seita de Jim Jones optaram pelo suicídio coletivo ingerindo aquela bebida com cianeto de potássio. Ninguém está sugerindo que o próprio Obama pudesse estar “tomando o Kool-Aid” – e qualquer dúvida a esse respeito foi eliminada com as primeiras escolhas para a formação de sua equipe de governo. Na verdade, além de ser receptivo a uma saudável dose de realismo, Barack Obama vem dando sinais de preocupação com a sua falta. “A exuberância da vitória foi temperada por um desconforto diante das altas expectativas populares em relação a um partido que conquistou o controle tanto do Congresso quanto da Casa Branca, num momento de grande turbulência econômica, com duas guerras além-mar e um déficit cada vez maior no orçamento”, escreveu o New York Times no dia 6 de novembro passado. E complementou: “Com a vitória assegurada, assessores de Obama dizem agora que é preciso conter o excesso de expectativa.”

Ainda assim, as expectativas se inflamaram. Um surto de pensamento mágico tomou conta do país. Ouvi em um canal de televisão a constatação empolgada de que os Estados Unidos, agora, estavam sendo festejados por todas as nações. “Todos querem estar do nosso lado”, congratulou-se outro comentarista. Imaginar que todos os habitantes do planeta possam querer estar do nosso lado não me parece tão diferente de ter imaginado, no início da guerra contra o Iraque, que pudéssemos ser recebidos com flores quando invadíssemos Bagdá. Já que os Estados Unidos escolheram se transformar numa nação desprovida de ironia, esta talvez não seja a maneira preferível de encarar as coisas.
Revista Piauí

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