Isto é democracia?

Diante de tantos escândalos e da ausência de punições aos acusados, é lícito indagar se o regime político sob o qual vivemos comporta o nome democracia.


Não me refiro apenas às questões que envolvem desvio e apropriação criminosa de dinheiro do Tesouro. O regime democrático impõe, além de absoluta honradez na administração dos recursos públicos, respeito aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência, e outros 21, especificados no art. 37 da Constituição da República.

Em meio às demais, as constituições de 1946 e 1988 sobressaem porque aprovadas em congresso cujos integrantes haviam jurado dotar a nação de lei destinada a guiá-la na longa, difícil e imprevisível caminhada rumo ao futuro. A de 1946 fracassou. Nada diferente sucede com a atual.

É notório que parcela considerável da Constituinte era integrada por aventureiros, ignorantes, carreiristas. Muitos não alimentavam vaga ideia acerca do que significava escrever e promulgar a Constituição da República.

De toda forma, lá se encontravam como representantes do povo, o que lembra Ruy Barbosa, quando, na Oração aos moços, disse: “Se o povo é analfabeto, só os ignorantes estarão em termos de o governar. Nação de analfabetos, governo de analfabetos”.

Passadas duas décadas, conclui-se que Constituição, que privilegiaria o homem, fracassou. Além das cicatrizes provocadas por meia centena de emendas, aquela que seria a esperança de redenção dos grotões de miséria não oferece respostas para grandes e pequenos problemas, a começar pela corrupção.

Regime representativo, sentenciou Ruy, “consiste na escolha do governo pelo povo”. Faltou advertir que a escolha será livre e consciente, para que os representantes se considerem comprometidos com as causas populares e deixem de ser despachantes de interesses pessoais ou corporativos.

A democracia brasileira está corroída desde a base. Se o povo é corrupto, analfabeto e ladrão, como declaram, em artigos publicados, o cientista político Bolívar Lamonier, a escritora Lya Luft e o também escritor João Ubaldo Ribeiro, as escolhas não poderiam deixar de refletir a composição da sociedade.

Discordo, porém, de tais manifestações. Creio haver sofisticada e bem lubrificada engrenagem político-partidária, construída ao longo da história, destinada a impedir que o povo se eduque, leia, reflita, julgue e decida livre e criteriosamente. A não ser assim, como explicar a presença, no Senado, de elevada porcentagem de suplentes e, na Câmara dos Deputados, de tal volume de alienados e corruptos?

A estrutura político-partidária deveria assemelhar-se à pirâmide. Na base, situada nos municípios e distritos, os eleitores organizar-se-iam em diretórios locais, cujos delegados designariam os membros dos diretórios estaduais, incumbidos, periodicamente, em ampla convenção, de investir o partido de direção nacional.

A anterior Lei Orgânica dos Partidos, sob a qual a maioria dos atuais partidos foi fundada, no art. 23 prescrevia que “a seção municipal constitui a unidade orgânica e fundamental do partido”. Verdadeiro? Não: falso.

Pessoas dotadas de discernimento mínimo sabem que nada há de mais artificial do que o sistema partidário. O irrealismo é observado no art. 3º, cujo texto assegura ao partido “autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento”.

Outro exemplo de fantasia encontramos no art. 5º, segundo o qual “a ação do partido tem caráter nacional e é exercida de acordo com os seus estatutos e programa”. Da ilimitada autonomia proliferou o autoritarismo interno. Quanto à ação nacional, de conformidade com os estatutos e o programa, acabou substituída pela rede de conhecidos feudos estaduais, geridos de acordo com os interesses de grupos ou do chefe.

No plano do Poder Executivo, a autorização para editar medida provisória ofereceu-lhe poderes discricionários, incompatíveis com a democracia e semelhantes àqueles que caracterizaram o regime militar e o Estado Novo de Vargas. A banalização das medidas provisórias contribui para o aviltamento do Congresso, reduzido à posição de coadjuvante no cenário político.

Em rumorosa entrevista, dada à revista Veja, o senador Jarbas Vasconcelos documenta a realidade de país, que possui Constituição na aparência democrática, mas cujo povo somente é convocado quando se trata de aplaudir discursos dos governantes. Por Almir Pazzianotto Pinto – Jurista e ex Ministro do Trabalho

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