"ONGs fabricam fatos, fabricam até índios"

Povos "emergentes" ou "ressurgidos" aumentam demanda por terras


O julgamento, no STF, da questão da reserva Raposa Serra do Sol já é visto como uma iniciativa histórica para tentar frear os conflitos, entre índios e ruralistas, pela posse da terra no País.

Mas há quem acredite que os conflitos ainda tendem a se prolongar por muito tempo. Um dos indicadores disso seria o fato de que no Brasil ainda surgem novos povos indígenas, com mais demandas por terras.

Conhecidos como emergentes ou ressurgidos, esses povos se localizam sobretudo no Nordeste. Um exemplo é o Ceará: quase metade dos 12 povos indígenas daquele Estado foi reconhecida dos anos 90 para cá. Dois desses povos foram cadastrados oficialmente nos órgãos do governo em 2007. E não está descartada a possibilidade de outros povos emergirem.

Situações semelhantes podem ser notadas em Pernambuco, Alagoas, Tocantins, Bahia e outros Estados. Na Bahia já são 14 povos, com 30 mil pessoas.

Tal cenário preocupa, é claro, as entidades ruralistas. "Parece que temos uma fábrica de índios", desabafa o presidente da Comissão de Assuntos Fundiários da Confederação Nacional da Agricultura, Leôncio de Souza Brito Filho. "Com esse processo de autoidentificação em vigor, não importa se o sujeito é branco e de olhos verdes: ele se declara índio e, desde que a comunidade ao redor o reconheça como tal, passa a ser índio."


A demanda por novas terras indígenas se acumula. Na Bahia, 80% dos pedidos de demarcação, homologação e regularização estão parados, aguardando definições, ora do Executivo, ora da Justiça.

Ao comentar o assunto dos ressurgidos, em seu blog na internet, o antropólogo e ex-presidente da Funai Mércio Pereira Gomes observou que valeria a pena investigar até que ponto a situação não estaria ligada ao quadro de penúria dessa população e de suas dificuldades para ter acesso à terra. Em outras palavras: poderia ser fácil reivindicar como índio do que como branco.

O antropólogo Sérgio Brissac, assessor do Ministério Público Federal do Ceará, tem outra opinião: "Um dos argumentos mais comuns dos que tentam negar os direitos dos índios é dizer que não são índios." No Nordeste, diz ele, esse argumento é mais comum por causa do contato mais longo dos índios com a sociedade ao redor: "Eles receberam os primeiros impactos desse contato, estavam na linha frente. Por isso não preservaram o estereótipo esperado do índio comum. Mas preservam até hoje a cultura de seus ancestrais."


APÓS RAPOSA, MS É O NOVO FOCO DE TENSÃO ENTRE ÍNDIOS E FAZENDEIROS

Incomodados com decisão do STF sobre Roraima, produtores decidem adotar ?tolerância zero? com reivindicações.

Foi preciso paciência. Mas mesmo assim teve dirigente sindical e líder ruralista de Mato Grosso do Sul que ouviu atentamente tudo que foi dito na última fase do julgamento da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, no Supremo Tribunal Federal (STF), na semana passada. Não perderam nada. Acompanharam passo a passo até as sete horas usadas pelo ministro Marco Aurélio Mello para justificar o voto.

Tanto interesse tem uma razão: vencida a etapa da Raposa, Mato Grosso do Sul deve ser o palco da próxima grande disputa no País entre produtores rurais e índios pela posse da terra. E o STF será novamente o desaguadouro do embate judicial.

A tensão cresce a cada dia naquele Estado. Na segunda-feira, dois dias antes de o STF retomar o julgamento, fazendeiros de Dourados se reuniram no parque de exposições rurais da cidade e deliberaram que vão resistir de todas as maneiras às reivindicações indígenas por terras. "Tolerância zero para as demarcações indígenas e para a infração dos direitos de propriedade do produtor rural" foi a declaração final do encontro.

A disputa envolve, de um lado, cerca de 40 mil índios guaranis, dos povos nhandeva e caiuá, espalhados pelo sul do Estado, na fronteira com o Paraguai. A maioria vive em áreas pequenas e isoladas umas das outras. Segundo os índios, essas áreas, delimitadas entre os anos de 1920 e 1930, ainda pelo antigo Serviço de Proteção ao Índio, são insuficientes para se manter enquanto grupo e assegurar a sobrevivência das suas famílias e da sua cultura.

Eles contam com o apoio do Ministério Público Federal, que associa a questão territorial à lista de problemas enfrentados pelos índios da região. É uma longa lista, na qual estão incluídos o contínuo aumento dos índices de alcoolismo e de violência nas aldeias, a taxa de mortalidade infantil muito acima da média nacional e, mais recentemente, uma incômoda e crescente sucessão de casos de suicídio entre adolescentes.

O lugar onde os problemas mais agravam é, não por coincidência, a aldeia situada nos arredores de Dourados - onde se proclamou a "tolerância zero".


PRODUTIVOS

Do outro lado estão os fazendeiros - sobretudo plantadores de soja e pecuaristas - que transformaram a região numa das mais produtivas do País, contribuindo para o crescimento do PIB e os sucessivos superávits da balança comercial brasileira registrados nos últimos anos. Estimulados pelos governos estadual e federal, que também cuidaram de lhes garantir os títulos de propriedade das terras, eles expandiram suas lavouras sobretudo a partir de 1970.

Muitos veem as reivindicações indígenas como obstáculo ao progresso e ameaça aos seus direitos e estão em permanente estado de alerta. No ano passado organizaram uma expedição, que se deslocou até Roraima, para hipotecar solidariedade aos produtores de arroz na área da Raposa Serra do Sol.

As reivindicações indígenas e o clima belicoso estão aumentando desde o final dos anos 80. Já resultaram em invasões, ações judiciais, mortes. Algumas ações chegaram ao STF, onde aguardam o veredicto final.

Uma delas envolve a Nhanderu Marangatu, terra indígena com 9.317 hectares, no município de Antonio João. Homologada pelo Lula da Silva em 2005, ela não foi efetivada até hoje devido a uma liminar concedida pelo STF aos fazendeiros que teriam terras desapropriadas.

REAÇÃO

A situação se agravou em junho do ano passado, quando a Fundação Nacional do Índio (Funai) publicou portaria criando grupos de trabalho para analisar a possível ampliação das terras indígenas. Houve uma reação em escala nacional.

Para acalmar os ânimos, o presidente da Funai, Márcio Meira, foi a Mato Grosso, onde se reuniu com representantes ruralistas e o governador, André Puccinelli (PMDB). A situação esfriou. Até dias atrás, quando apareceu a segunda portaria, avançando instruções sobre as ações dos grupos de trabalho.

Foi a senha para mais protestos. "A Funai atropela os acordos feitos com o governador e tenta impor suas regras, sem ouvir os proprietários", diz Roseli Maria Ruiz, da coordenação da Recove, organização não-governamental que agrega produtores rurais descontentes com a situação de conflito. Roseli foi uma das lideranças sul-matogrossenses que acompanharam minuto a minuto o julgamento do STF.

Para ela, os ministros sinalizaram avanços, com as restrições que impuseram às formas de demarcação e ocupação das terras indígenas. Mas poderiam ter sido mais afirmativos: "Em várias questões, como a forma de se definir o tamanho da terra indígena, o STF não foi definitivo, não jogou uma pá de cal sobre o assunto. Isso deixa um leque aberto para vários tipos de interpretação."

O marido de Roseli é um dos proprietários que teriam terras transferidas para a União na criação da Nhanderu Marangatu. Ela assegura que aquelas terras estão nas mãos de particulares desde o século 19: "As ONGs que tentam tutelar os índios fabricam fatos. Fabricam até índios."

Para a antropóloga e demógrafa Marta Azevedo, que trabalha no Núcleo de Estudos da População (Nepo), da Unicamp, e realiza pesquisas entre guaranis, a situação indígena no Estado é calamitosa: "Os governos não resolvem os problemas, deixando-os para o próximo governo. Foi assim que chegamos a esse quadro trágico."

A melhor saída, na opinião da especialista, é tentar uma solução negociada, com todas as partes interessadas: "Vai ser tão difícil quanto por Israel e o Hamas para negociar. Poderá demorar, consumir muitas reuniões, até que as partes comecem a dialogar e negociar. Mas não vejo outro caminho." –
Estadão - Por Roldão Arruda

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